Elas sonharam com uma greve feminista. Eis o seu plano

A greve feminista internacional acontece este ano em Portugal, pela primeira vez, com o apoio de sindicatos. Há concentrações marcadas para mais de dez cidades neste 8 de Março.

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Acção de divulgação da greve feminista, no Porto Adriano Miranda
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“Todas as vozes contam”, foi o lema sob o qual foram lançadas, há um ano, as sementes para a greve feminista que pretende abanar o país nesta sexta-feira, dia internacional das mulheres. A 8 de Março, milhões de pessoas em Espanha fizeram greve e saíram às ruas para reivindicar igualdade de género; em Portugal centenas de feministas concentraram-se em Braga, Porto, Coimbra e Lisboa. Dois dias depois, um Encontro de Mulheres reunia mais de cem pessoas na Escola Secundária Soares dos Reis, no Porto. Ouviram-se desabafos de mulheres de vários quadrantes.

Na sala onde se debatiam as condições das mulheres trabalhadoras, Rebeca Moore pedia a palavra para desabafar sobre as poucas respostas que encontrava para “uma geração sem futuro” — a sua. “Precisamos de um tipo de sindicalismo diferente, onde as questões específicas das mulheres sejam trabalhadas", apelava.

Começava então a caminhada portuguesa para a “greve feminista” — o 8M — de 2019, o braço de uma mobilização internacional que em Portugal é impulsionada pela Rede 8 de Março, plataforma de mais de 30 colectivos, de associações a partidos (BE e MAS).

Nos últimos meses, foram criados 12 núcleos por todo o país, com o envolvimento de mais de duas centenas de pessoas. Houve reuniões regulares. E estão marcados protestos de diferentes dimensões para esta sexta-feira em Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Viseu, Amarante, Vila Real, Évora, Albufeira, Aveiro, Ponta Delgada (Açores), Fundão e Covilhã.

Greve ao trabalho remunerado, à prestação de cuidados, ao consumo e estudantil — são estes os quatro eixos desta “greve feminista”. A redacção do manifesto começou em Setembro, quando a Rede 8 de Março passou a ser a plataforma organizadora; em Dezembro, o texto foi aprovado pelas cerca de 50 representantes de várias cidades que se reuniram no primeiro plenário nacional, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. O manifesto foi apresentado publicamente dois meses depois, em Vila Real, após ser aprovado pelos vários núcleos.

Cinco sindicatos lançaram pré-avisos de greve para esta sexta-feira — Sindicato das Indústrias, Energia, Serviços e Águas de Portugal (Sieap), Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), Sindicato dos Trabalhadores de Saúde, Solidariedade e Segurança Social (STSSS), Sindicato dos Trabalhadores de Call-Center (STCC ) e Sindicato de todos os Professores (STOP)  —, permitindo que mulheres (e homens) nessas diferentes áreas possam parar de trabalhar para protestar contra a desigualdade.

A convocatória para a greve abre espaço para que outros temas possam ser discutidos, aponta Gonçalo Velho, do Snesup. O dirigente fala não apenas das disparidades na progressão das mulheres na carreira, no acesso a cargos de liderança nos departamentos e centros de investigação ou à difícil conciliação da vida pessoal com a profissional, mas também das visões estereotipadas que limitam o potencial das mulheres na academia.

Quanto ao processo que conduziu ao pré-aviso, Gonçalo Velho recorda que as desigualdades de género têm estado na agenda do sindicato; além disso, a direcção do mesmo tem uma representação equilibrada entre homens e mulheres, o que confere mais “sensibilidade” para responder aos argumentos apresentados sobre as várias dimensões da discriminação de género.

Para muitos, contudo, o conceito de greve é visto como estritamente respeitante às relações laborais. No ano passado, nenhum sindicato aceitou o desafio do 8M, levando as activistas a apelar a “paralisações”. Na grande manifestação do Dia da Mulher, a 10 de Março, a dirigente do MDM, Regina Marques, tinha afirmado que a greve feminista em Espanha fora “um show-off muito grande”. “Achamos que elas têm a suas razões para fazer isso, mas nós, em Portugal, não [temos] razões ainda para fazer isso. E porquê? Só metade das mulheres é que são trabalhadoras e têm de fazer greve por razões laborais e não por outras questões”, declarou à agência Lusa.

Islândia, 1975

A realização de uma greve feminista não é inédita, sendo o exemplo histórico mais conhecido a paralisação de mulheres na Islândia, em 1975, para dar visibilidade ao trabalho feminino, em particular as tarefas domésticas. Nos últimos anos, estas paralisações tornaram-se mais comuns, espoletadas pelo movimento “Ni Una Menos”, na América Latina: na Argentina, em 2015, as mulheres pararam em indignação contra o homicídio de uma adolescente. No ano seguinte, voltaram a fazer o mesmo depois de outro femicídio, sob o mote “Vivas nos queremos”. E em Outubro de 2016, na Polónia, as mulheres fizeram uma “segunda-feira negra” para protestar contra o retrocesso nas leis do aborto no país.

É neste caldo que, no início de 2017, um grupo de académicas feministas lançou o apelo a uma paralisação internacional, que se tem repetido e tem encontrado apoio em Portugal através de manifestações no dia 8 de Março.

Para a organização do 8M, esta é uma greve que vai além do trabalho assalariado — Andrea Peniche, do núcleo do Porto, descreve-a como uma “greve social”. “A greve feminista vem trazer uma reconfiguração do conceito de greve”, explica ao PÚBLICO. “O que dizemos é que o conceito de trabalho, tal como ele é entendido nas sociedades em que vivemos, é um conceito curto porque não abarca a experiência das mulheres”, afirma. “Existe outro trabalho que as mulheres desempenham na sociedade que queremos ‘visibilizado’, respeitado, defendido e protegido. Por isso o nosso apelo a uma greve social, e não a uma greve apenas laboral."

O pessoal é político

No final de Fevereiro, em Lisboa, a Rede 8 de Março reuniu quatro sindicalistas para falarem da greve. Ao descreverem os processos de debate a nível interno, nos sindicatos, pouco falaram sobre as disparidades salariais, o “tecto de vidro” que limita a ascensão das mulheres a cargos de poder — veja-se a necessidade de introduzir leis para atingir um mínimo de 20% de mulheres nos conselhos de administração das empresas cotadas em bolsa —, o assédio sexual e moral.

Antes, as mulheres que compunham a mesa debruçaram-se sobre as condições de desigualdade em que acediam ao emprego: as horas de tarefas domésticas a desempenhar que representam uma segunda jornada de trabalho, as exigências decorrentes da maternidade, a inexistência de condições contratuais pensadas para pessoas — homens e mulheres, mas sobretudo mulheres — que têm que conciliar o trabalho com a vida pessoal e familiar.

Rebeca Moore estava na plateia. Conta ao PÚBLICO que a sua vida deu uma volta desde Março do ano passado. A então professora de inglês mudou-se de Coimbra para Lisboa à procura de trabalho, estando actualmente num call center. Sindicalizou-se.

Na mesa redonda pediu a palavra para relatar como viu o brilho nos olhos das companheiras nas reuniões em que, “finalmente, ouviam a estrutura sindical a falar sobre as suas vidas” — assuntos que as preocupavam e lhes diziam respeito directamente, reconhecendo que algumas questões “afectam as mulheres de forma diferente porque partem de uma situação de desvantagem”. As acções e debates tentam mostrar que tudo está ligado — da exploração no trabalho às decisões que tomamos sobre o que consumir.

Norte a Sul

Estas grevistas falam ainda da falta de partilha das tarefas domésticas. E da violência que atinge as mulheres por razões de género — ou seja, por representarem papéis sociais que as colocam numa posição de inferioridade —, em particular a que ocorre nas relações de intimidade. Um dos objectivos desta greve é fazer perceber que a discriminação das mulheres — nas condições laborais, no acesso a cargos de poder na vida pública, ou nos considerandos de um acórdão judicial que se recusa a reconhecer-lhe credibilidade —, está num espectro do qual o femicídio é a expressão mais atroz. Na raiz estão as crenças de que as mulheres podem ser subjugadas — algo que ainda em 2019 pode ser encontrado em correntes de determinados partidos e lido em alguma opinião publicada em Portugal.

Para 14 de Fevereiro, dia dos namorados, as associações que organizam a greve convocaram manifestações em cinco cidades — descentralizadas e ruidosas, ao contrário das manifestações silenciosas convocadas apenas para Lisboa —, na sequência da morte de uma mulher e da neta, assassinadas pelo pai da criança, ex-companheiro da mãe. “Nós reagimos às coisas, não existimos só para fazer a greve internacional das mulheres. A nossa vida não é de 8 de Março em 8 de Março”, sublinha Rebeca Moore. “Nós vivemos todos os dias com os problemas que nos são impostos. E precisamos começar a exigir respostas à altura.”

Nos últimos três anos tem sido essa a estratégia adoptada por estes novos movimentos: a de criar pequenos grupos que se mobilizem nas próprias cidades, seja para manifestações de repúdio à violência machista ou para as marchas do orgulho LGBTI. “Uma das preocupações que temos é conseguir chegar também às cidades mais pequenas onde há mais machismo, onde as mulheres também passam por imensas dificuldades, e têm mais dificuldade em se ligarem a estes processos de luta maiores”, remata Laura Viríssimo, do núcleo de Lisboa da Rede de Março.

Em Viseu, por exemplo, o grupo que organiza a concentração do dia 8 é a Plataforma Já Marchavas, que em Outubro do ano passado levou à rua a primeira marcha pelos direitos das pessoas LGBTI na cidade. Bárbara Xavier, uma das representantes no plenário de 8 de Dezembro do núcleo então recém-criado, conta que o percurso dos últimos três meses passou por reuniões semanais, distribuição de flyers, colagem de cartazes.

Para sexta-feira, prevê-se uma concentração das 17h às 20h no Jardim Tomás Ribeiro, com performances, poesia, a leitura do manifesto da greve e a abertura de uma exposição de pintura feminista por alunos da escola Infante Dom Henriques.

Na Cova da Beira, onde as actividades acontecem de manhã no Fundão e à tarde na Covilhã, serão cerca de 20 pessoas mais activas, sobretudo mulheres mas também homens. Já em Vila Real, o núcleo também integra colectivos que participaram na construção da primeira marcha LGBTI, como o movimento Catarse, mas o grupo é heterogéneo: alunas e professoras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, elementos de partidos políticos como o Bloco de Esquerda, e cada vez mais pessoas sem filiação a nenhum grupo em particular que aderem à causa. Novamente, cerca de duas dúzias de pessoas activamente envolvidas nas várias reuniões.

“Pode parecer pouco, mas quem conhece um bocadinho os movimentos activistas e partidários sabe que não é fácil reunir 30 pessoas que, de semana a semana, vão a reuniões das quais sabem que vão sair com tarefas”, sublinha Andrea Peniche. Reconhecendo o impacto das grandes manifestações nacionais, alerta que é preciso cuidado para não isolar activistas do resto do país. “Tentamos proporcionar a todas as mulheres que se revejam no manifesto e neste dia de protesto a oportunidade de ocupar o espaço público.”  

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