Leaving Neverland, o documentário que nos intima a repensar Michael Jackson e o abuso sexual
Dois homens acusam o rei da pop de anos de abusos sexuais. É um documentário meticuloso e doloroso que recupera alegações com décadas, reenquadradas na era #MeToo e focadas apenas no rosto das alegadas vítimas. A família Jackson chama-lhe “linchamento público”.
O documentário Leaving Neverland, há dois meses a causar desconforto antes sequer de se estrear, é inquietante. Ou “fascinante e agudamente convincente”, ou ainda de tal forma “arrepiante” que “cicatriza a mente com palavras”, como foi sendo descrito. Leaving Neverland, que durante quatro horas dá voz a dois homens que dizem ter sido vítimas de abuso sexual às mãos de Michael Jackson ao longo de anos quando eram crianças, é um agitador de consciências. Gira à volta de alegados actos criminosos, pedofilia, e do valor da palavra dos acusadores na era #MeToo, mas também da sedução do estrelato.
Leaving Neverland estreia-se nesta sexta-feira no serviço HBO Portugal, dias depois de passar nos EUA e no Reino Unido nos canais que o produziram, a HBO e o Channel 4. Os rostos de Wade Robson e James Safechuck ocupam o ecrã em grande parte das meticulosas quatro horas do documentário, dividido em dois episódios, em que contam histórias separadas mas padronizadas de sedução infantil, do afastamento dos seus pais, ofuscados e felizes pela fama de Michael Jackson, e da sua violação gradual e sistemática enquanto crianças de sete e dez anos — e até ao início da sua adolescência — por um homem na casa dos 30. Michael Jackson morreu em 2009.
É uma história que se baseia apenas nos seus relatos, e é uma história que o mundo já conhecia em parte. Michael Jackson, o rei da pop, uma das maiores celebridades globais da história moderna, foi publicamente acusado deste tipo de crimes em pelo menos duas ocasiões. Em 1993, quando o próprio Jackson fez um vídeo melífluo a garantir a sua inocência — “Estas acusações são absolutamente falsas”; “se sou culpado é de amar crianças de todas as idades e raças”, disse, com o vídeo a ser justaposto com a ovação em pé que recebeu ao dizer o mesmo nos prémios da organização activista negra NAACP — e depois chegou a acordo com a família da alegada vítima. E em 2003, resultando num julgamento mediático em 2005 que o absolveu. A família Jackson e os gestores do legado Michael Jackson negam e condenam veementemente agora estas acusações como um “linchamento público” e processaram a HBO em cem milhões de dólares.
“Mas o que muda com Leaving Neverland é que estas duas pessoas são muito credíveis, estão a contar histórias em detalhe em close-up num documentário de quatro horas. É um nível de intimidade que nunca tínhamos visto”, contextualiza Robert J. Thompson, director do Centro Bleier para a Televisão e Cultura Popular da Universidade de Syracuse. Agora vemos, corporizadas, as acusações, a descrição de “um pénis adulto na minha boca de sete anos”, como diz Wade Robson, e de “um relacionamento sexual de casal” que James Safechuck, de dez anos, acreditava ter com o autor de Bad ou Don't stop ‘til you get enough. “Em 2005 não havia câmaras dentro do tribunal. O documentário é vagaroso. Tem tudo que ver com este formato”, explica ao PÚBLICO o professor. E com o momento #MeToo, “que criou um ambiente muito mais favorável para este tipo de histórias. Antes era muito hostil”.
O movimento #MeToo revalorizou a credibilidade das vítimas de assédio e crimes sexuais no tribunal da opinião pública, desencadeou alguns processos judiciais ainda a começar contra homens célebres e poderosos como Harvey Weinstein ou Kevin Spacey e teve impacto na condenação de Bill Cosby, levando a inúmeras denúncias contra homens (e algumas mulheres) em lugares de poder. Em Janeiro, a série documental Surviving R. Kelly, que também será agora exibida em Portugal, no dia 10 no canal Crime + Investigation, recuperou décadas de queixas de que o rapper abusava de raparigas menores; foi agora detido e acusado de crimes que garante não ter cometido. “O documentário tornou-se uma forma nova e enorme de despertar consciências”, sublinha Robert J. Thompson, fruto de “maturação e desenvolvimento de um despertar tardio de consciências. Mas a ideia de que é preciso um documentário televisivo para fazer algo acontecer, para lubrificar o sistema judicial, é algo perturbador”.
Wade e James — e Michael
Wade Robson, um coreógrafo australiano que trabalhou com Britney Spears, N’Sync e teve um programa na MTV (exibido em Portugal), tem hoje 36 anos. Tinha as paredes forradas com posters do cantor de Thriller, que ainda é o álbum mais vendido de sempre, e conheceu Michael Jackson aos cinco anos, depois de ter ganho um concurso de dança. James Safechuck tem 41 anos. Conheceu Michael Jackson aos dez anos na rodagem de um anúncio para a Pepsi, em que actuava. Com alguma contenção mas com lágrimas e esgares, vão descrevendo histórias paralelas.
Wade Robson: “Era a impossibilidade total, aquele ser de outro mundo, Michael, eu ia conhecê-lo.” James Safechuck: “Eu posso conhecer o Michael Jackson quando a maior parte das pessoas só pode sonhar com isso.” Havia convites à família para o visitarem no rancho Neverland ou irem com Jackson em digressão, pernoitavam no rancho ou nos hotéis. Tanto Joy Robson quanto Jennifer Safechuck, as mães, continuam a sorrir ao falar desse tempo, incapazes de reprimir a nostalgia de estar com a maior estrela do mundo em aviões privados e hotéis de luxo.
Inicialmente, não permitiam que dormissem a sós no mesmo quarto, depois cederiam aos pedidos e até os deixavam entregues à superestrela durante dias. Segundo Robson e Safechuck, o músico começara por lhes mostrar, tocando-lhes, o que era a masturbação. “Ele dizia que era uma forma normal de expressar afecto”, diz Safechuck. Evoluía para uma “rotina” em que, alegam, havia masturbação mútua, sexo oral, exibição de pornografia, álcool e pelo menos uma tentativa, mais tarde, de sexo anal com cada um. James Safechuck descreve, sobre imagens do interior vazio das casas do rancho Neverland: “fizemos sexo ali”, “fizemos sexo lá”, infinitamente. Wade Robson recorda estar de quatro na cama, nu, com Jackson atrás de si a masturbar-se e com uma imagem do Peter Pan, a criança que nunca cresceu e que foi sempre uma obsessão e uma associação a Michael Jackson, à sua frente.
James Safechuck: “ele dizia-me que se alguém descobrisse a vida dele acabava e a minha vida acabava”; “tivemos uma cerimónia falsa de casamento”, diz enquanto mostra o anel que Michael lhe terá dado, com as mãos trémulas. Wade Robson: “ele dizia-me que iríamos para a cadeia o resto das nossas vidas”; “começou a chamar-me filho”. Atrás de portas fechadas de quartos mais ou menos secretos e protegidos por um sistema de campainhas que alertava a aproximação de alguém, dizem ter sido molestados entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Jennifer Safechuck: “Não estava preocupada, [estava] mais curiosa pelo que estavam a fazer lá dentro.” Joy Robson: “Wade e Michael ficavam muito no quarto, a brincar, suponho.”
Vítimas perfeitas
Leaving Neverland tenta também mostrar as nuances de uma vítima de pedofilia. Dan Reed, o seu realizador, é também autor de The Pedophile Hunter (2014), documentário que lhe deu um BAFTA. Fala-se do aliciamento (grooming, como é chamado em inglês), da percepção de uma criança do amor e sexo, de como a imaturidade e a memória mascaram o desequilíbrio de poder como uma relação amorosa e de como é possível, como dizem as duas alegadas vítimas, amarem Michael Jackson e terem mentido por ele às autoridades. “Uma das dádivas de Leaving Neverland”, escreve a crítica Megan Garber na revista Atlantic, “é ajudar a desmantelar as presunções perigosas e resistentes sobre a ‘vítima perfeita’.” Oprah Winfrey, vítima de abuso sexual na infância, fez um programa sobre Leaving Neverland com Reed e os dois acusadores. “O abuso sexual não é só abuso; também é sedução sexual.”
“Adorava o Michael, ele amava-me, isto era algo que acontecia entre nós — e pronto”, diz Robson sobre o que lhe dizia a memória em 2005, quando testemunhou em tribunal a favor de Jackson no julgamento em que Gavin Arvizo se queixava de ter sido violado pelo autor de Billie Jean. Lá, como tinha dito em 1993 às televisões e à polícia depois da queixa de outro menino, Jordy Chandler negou ter sido vítima de Jackson. O mesmo fez o actor Macaulay Culkin, amigo próximo do rei da pop durante anos na sua infância e que nega até hoje qualquer contacto sexual com Jackson — que foi brevemente detido em 2003 no âmbito do caso Arvizo. Em 1993, James Safechuck também negou qualquer intimidade sexual com Michael Jackson e, tal como Robson, terá dito o mesmo à mãe.
Os dois homens entretanto tornaram-se pais e isso fê-los revisitar a relação com Jackson. Sofriam de depressão, e contam à família os alegados abusos. Joy Robson: “Foi como ser atropelada por um camião. Não sabia mesmo.” Stephanie Safechuck: “Não protegi o meu filho. Isso vai assombrar-me sempre. Tinha uma função, tinha um filho, e fiz merda. Estive meses a adorar a minha vida com o Michael e a viajar e a viver uma boa vida, por assim dizer... Tudo com base no sofrimento do meu filho.” (O pai de Robson, afastado da família desde que, em plena febre Michael Jackson, a mãe decidiu mudar-se da Austrália com os filhos para a Califórnia, matou-se em 2002; o pai de Safechuck não foi entrevistado.)
Robson contou a sua história em 2013 na TV e Safechuck abordou-o depois disso. Ambos foram para tribunal e viram os casos rejeitados. Aguardam decisões sobre os recursos. Garantindo não terem sido pagos para isso, anos mais tarde filmariam o documentário que o Festival de Sundance, em Janeiro, recebeu com uma ovação em pé.
Sedução absoluta
O documentário “é também sobre a sedução absoluta da celebridade” — estas eram “pessoas normais reconhecidas por uma superestrela”, lembra Robert J. Thompson ao PÚBLICO. “É importante ter isto presente quando se julga duramente Stephanie Safechuck e Joy Robson por não resistirem ao magnetismo de Michael Jackson”, recorda Hank Stuever, crítico de TV do Washington Post. Ele, em 2005, cobriu o julgamento de Jackson e, como o mundo, questionou-se sobre o caso, mas também viveu anos de imagens de Michael Jackson de mãos dadas com rapazinhos, com miúdos como Safechuck à janela dos quartos de hotel de onde Jackson acenava aos fãs, com a adoração das crianças pelo Flautista de Hamelin dono de uma Terra do Nunca com parques de diversões, brinquedos e doces em todas as salas. O mundo também o adulava, e o documentário está a gerar uma revisão dessa era.
“Disseram-nos em tempos [que esses comportamentos] eram uma expressão inocente do amor entre um homem, que sacrificou a sua própria infância para dar alegria a milhões de pessoas, e os fãs rapazes que ele tinha o direito de apreciar como amigos especiais”, escreve Stuever. A criança adulta fazia parte do mito de Michael Jackson, alvo de violência física e psicológica por parte do pai e gestor dos Jackson 5, Joe Jackson, que o tornou uma estrela aos cinco anos. “[Michael Jackson conquistou] a nossa crença de que ele era uma metáfora; uma alegoria, um farol, um aviso — para, da, sobre a América. Temos de olhar muito para ele para nos sentirmos assim. Também temos de olhar muito para o lado”, constata Wesley Morris, crítico cultural do New York Times. Craig Jenkins, no site Vulture, postula: “Demos carta branca a um performer para que vivesse como queria porque a música era mais importante para nós do que relatos do que poderia estar a passar-se nos bastidores. Ninguém merece tanto poder.” Dizem acreditar nos dois acusadores.
“Não é jornalismo”
Michael Jackson tentou sempre ser o narrador da sua história, uma versão oficial dançante de óculos espelhados que deslizava em modo Moonwalk pelos media — que o contrariavam, cobiçavam, chamavam-lhe “Wacko Jacko”, escrutinavam-lhe o aspecto. Em Leaving Neverland, não lhe é permitida a presença celestial — os ídolos pop vivem nas alturas, são estrelas ou algo mais. “O abuso não parecia estranho porque era feito por um homem que era como um deus para mim. Para mim, muito daquilo era validação”, diz Wade Robson ao Guardian.
Agora, a ausência de contraditório é uma das principais críticas a Leaving Neverland. Os fãs mobilizaram-se à volta de hashtags. Clamam #mjinnocent e inundam #LeavingNeverland com a sua posição; à hora da transmissão do documentário, o canal oficial no YouTube divulgou concertos raros; houve anúncios “Os factos não mentem. As pessoas, sim” nos autocarros em Londres e nas ruas dos EUA. “Os criadores deste documentário não estão interessados na verdade. Nunca entrevistaram uma única alma que conhecesse o Michael excepto os dois que cometeram perjúrio e as suas famílias. Isso não é jornalismo, e não é justo, mas os media estão a perpetuar estas histórias”, atacam a família Jackson e os gestores da marca Michael Jackson, que arrecadaram dois mil milhões de dólares só em negócios póstumos como o musical na Broadway cuja estreia se mantém para 2020.
Dan Reed defende que o documentário não é sobre Jackson mas sobre os efeitos do abuso sexual nas famílias. “É sobre ouvir as histórias de dois indivíduos específicos e as suas famílias”, diz. “Não sentimos a necessidade de incluir a opinião de pessoas sem conhecimento directo quanto ao que aconteceu a estes indivíduos.”
Michael Jackson era pedófilo? Leaving Neverland e as famílias Robson e Safechuck dizem que sim, com o apoio da HBO. A família e os gestores da valiosa marca Michael Jackson, bem como uma facção dos seus fãs, dizem que não. Algumas rádios nos EUA, Reino Unido, Nova Zelândia ou Canadá deixaram de passar a sua música, algo que os dois acusadores dizem não desejar - querem, além da denúncia óbvia, “apresentar uma oportunidade para as pessoas reavaliarem quem consideram ser os seus ídolos”, como resume Safechuck.
O documentário intima todos a julgar novamente este caso e a deixar a Terra do Nunca, ou pelo menos a fazer-lhe uma adenda. “Ensino História da Televisão Americana e não se pode contá-la sem Bill Cosby”, exemplifica Robert J. Thompson sobre o comediante condenado por agressão sexual. “Agora, dou um prefácio sobre as histórias de abusos que o rodeiam, uma gigantesca nota de rodapé antes de um episódio. Michael Jackson evitou que isto fosse a coisa pela qual foi lembrado e Leaving Neverland pode mudar isso.”