Acesso à interrupção voluntária da gravidez discutido no Parlamento

Bloco de Esquerda recebeu queixas de mulheres que não tiveram acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez. Regulador acaba de criticar barreiras no acesso a aborto legal. Parlamento discute esta quarta-feira se é preciso uma acção firme do Governo para garantir estes direitos.

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Paulo Pimenta

A comissão de Saúde do Parlamento vai discutir nesta quarta-feira uma proposta feita em Outubro pelo Bloco de Esquerda para que o Governo tome medidas e remova obstáculos no acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). O debate surge depois de o BE ter enviado um conjunto de perguntas a todas as entidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), agrupamentos de centros de saúde e hospitais, em sequência de mensagens de utentes que se queixavam de dificuldade de acesso à IVG.

Ainda recentemente a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) detectou constrangimentos no acesso IGV em pelo menos três hospitais do SNS – Hospital de Cascais, Centro Hospitalar Lisboa Norte (Santa Maria) e Centro Hospitalar Lisboa Ocidental (São Francisco Xavier). Aliás, o relatório, segundo o deputado do BE Moisés Ferreira, confirma algumas suspeitas do partido. “Daí fazermos o agendamento”, afirmou ao PÚBLICO. “As recomendações que fazemos no projecto estão mais actuais do que nunca”, afirma.

O BE perguntou a todos os hospitais e centros de saúde se disponibilizavam consulta prévia e se tinham condições de praticar IVG e que tipo de IVG. Três situações saltaram à vista: mais de 50% dos centros de saúde não disponibilizam consulta prévia; alguns hospitais encaminham as mulheres para outros locais e obrigam-nas, assim, “a várias deslocações”; e “a inexistência de resposta em vários hospitais públicos”, com destaque para a região de Lisboa e Vale do Tejo.

O BE pretende também questionar o Ministério da Saúde sobre outros aspectos do acompanhamento da gravidez, no sentido de perceber de que forma estão a ser assegurados pelos organismos públicos do SNS.

Também o PEV apresentou, em Dezembro, um projecto de resolução muito semelhante ao do BE, defendendo a “disponibilização de informação acessível e actualizada sobre o acesso à interrupção voluntária da gravidez, com vista à eliminação de obstáculos e à criação das devidas condições de acesso”. O diploma baixou à comissão de Saúde nos últimos dias do ano passado e não foi ainda discutido pelos deputados.

Falta de dados não permite avaliar acesso à saúde reprodutiva

Um relatório encomendado pelo Parlamento Europeu ao Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), publicado no final do ano passado, conclui que, apesar de Portugal se destacar nas garantias reconhecidas por lei em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, não há dados que permitam ter a certeza de que a lei está a ser bem aplicada.

Para Dália Costa, investigadora do ISCSP e especialista do EIGE responsável pela análise do caso português no relatório que comparou seis países — Croácia, República Checa, Itália, Polónia, Portugal e Suécia —, há uma “falta monitorização” em vários campos. Não há dados, por exemplo, sobre o acesso de jovens às consultas de saúde sexual e reprodutiva. Mas Portugal não está sozinho: aqui, como nos outros países analisados, não há dados, por exemplo, sobre o acesso a rastreio de cancro de mama e cervical.

Não existem também dados oficiais sobre objecção de consciência. Os que são referidos no relatório foram recolhidos pela Ordem dos Médicos em 2009, e indicam que 80% dos médicos ginecologistas e obstetras serão objectores de consciência. O facto de em Portugal, neste momento, a condição de objector de consciência ser comunicada pelo médico apenas aos respectivos serviços, sem necessidade de justificação, dificulta o desenho de planos para corrigir, por exemplo, assimetrias regionais.

De facto, segundo o BE, alguns hospitais disseram que não realizam a IVG porque a maior parte dos médicos são objectores de consciência. “Sempre dissemos que é um direito mas é preciso que, não o atropelando, o Ministério da Saúde encontre formas de não prejudicar a mulher. O relatório da ERS sobre queixas parece deixar claro que houve mulheres que ficaram prejudicadas”, afirma Moisés Ferreira.

Os dados disponíveis passam ao lado de “vulnerabilidades não monitorizadas” que colocam obstáculos adicionais ao acesso a estes cuidados, refere o relatório do EIGE. Por exemplo, pessoas migrantes, LGBTI, com deficiência, mais velhas ou mesmo as menores de 16 anos, que precisam de autorização dos pais para ter acesso a determinados tratamentos.

Por fim, os “obstáculos culturais” são uma preocupação flagrante no relatório, e Portugal não foge do “profundo estigma da sociedade como um todo” identificado pela equipa do EIGE, que se traduz não apenas nos obstáculos práticos, mas numa “falta de apoio político”.

“A desigualdade de género é o denominador comum” entre a saúde sexual, a saúde reprodutiva e a objecção de consciência, explica Dália Costa, olhando para o padrão encontrado na leitura que faz dos dados e informações recolhidas através de entrevistas a profissionais e especialistas.

“Os direitos são definidos como se as pessoas fossem assexuadas e a questão de género não tivesse importância”, alerta. Por outro lado, na prática, há um viés “pró-familiarista”: a saúde sexual é vista como relacionada com maternidade e reprodução, a parentalidade é reduzida à maternidade (deixando os pais — homens — de fora das prioridades), a saúde sexual e reprodutiva é limitada ao contexto da família, e não do indivíduo.

Volta-se, assim, aos problemas encontrados na monitorização da aplicação da lei — uma lei que pode afirmar-se estar “um pouco à frente” do que é a consciência social em Portugal. “Funciona como vanguarda”, explica a investigadora, mas “cria expectativas elevadas que não conseguimos cumprir na prática”. É, contudo, algo “transversal às áreas dos direitos”: a aplicação — a disponibilidade dos serviços de saúde e o acesso em todo o território — fica aquém do esperado. com Joana Gorjão Henriques

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