De Solange já se espera que seja capaz do inesperado

Aos 32 anos, está no topo, sem facilitismos, como prova no novo álbum, When I Get Home. A sombra da irmã Beyoncé já não paira por aqui.

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Max Hirschberger

É um álbum. Obra inteira do início ao fim. Não um conjunto de temas soltos. Algo que vai rareando quando se fala de nomes que operam no centro do mercado de massas. Numa entrevista recente, Solange Piaget, também conhecida por Solange Knowles, ou “irmã de Beyoncé”, ou mais exactamente apenas por Solange, dizia que trabalho de edição era um dos eixos mais importantes da sua forma de operar.

Faz sentido. When I Get Home, o novo álbum, é uma obra do ponto de vista sónico tão coesa que a conseguimos a imaginar a tecer as várias pontas de forma tão minuciosa, que as transições entre diferentes canções nem sempre são evidentes. É uma espécie de eterno contínuo ambiental, onde reavalia a canção clássica, apesar de estarmos a falar de 19 temas num disco não muito longo com cerca de 40 minutos.

Entre as influências do novo álbum tanto cita algumas das obras mais desconhecidas de Stevie Wonder, as telas do expressionista abstracto Mark Rothko (diz que passava horas a contemplar as suas pinturas da Capela de Houston), ou o minimalismo de Steve Reich e o jazz que procura a transcendência de Alice Coltrane. E mais uma vez faz todo o sentido. Na génese das canções estiveram sessões de improviso em vários locais (de Nova Orleães, onde vive na actualidade, à Jamaica), que depois foi editando, de forma a criar quase uma espécie de abstracção, uma linearidade sequencial. Nem a impressionante ficha técnica (onde constam nomes como Pharrell Williams, Panda Bear, Blood Orange, Cassie, the-Dream, Sampha, Metro Boomin, Gucci Mane, Tyler The Creator ou Earl Sweatshirt) que poderiam indiciar algum tipo dispersão a desviam do seu centro de operações. Esta é uma obra nitidamente autoral.

Ao contrário do anterior álbum, onde havia canções como Cranes in the sky ou Don’t touch my hair, que se posicionavam como singles potenciais, aqui não existe nada disso. Aliás as formalidades habituais no lançamento de álbuns – singles de avanço ou campanhas de publicidade prévias foram abandonadas neste caso, tendo o disco sido lançado de surpresa, numa estratégia que muitos outros têm desenvolvido nos últimos anos, como Beyoncé. Aliás as comparações com a irmã não se ficam por aqui, já que desta vez Solange optou por também lançar um álbum visual (um projecto interdisciplinar de performance, arte e filme que a mostram a regressar à cidade de Houston onde cresceu) para além da versão convencional. Ao mesmo tempo os temas que motivam Beyoncé e Solange – da negritude ao empoderamento feminino – não diferem, embora no caso da irmã mais nova a abordagem seja, ao mesmo tempo, mais subtil e complexa.

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A existir um elemento em evidência no novo disco é a voz, que sugere intimidade, e a sonoridade lânguida, climas serenos e arranjos envolventes. Oiça-se por exemplo Time(is), com o tom ameno e voluptuoso da voz em espiral repetindo "You’ve got to know", e o som etéreo a envolver a vocalização, numa balada de belo efeito.

As palavras por vezes são evocativas, noutras repetem-se de forma desorientadora, flutuando como se constituíssem a narrativa de um sonho sem fim. A sonoridade ao longo dos temas não é bem soul, nem jazz, nem funk, nem R&B, nem com ecos de hip-hop. Acaba por ser um pouco disso tudo, embalado numa moldura electrónica de cadências rítmicas em câmara-lenta e sons inesperados de sintetizadores, com o todo a guardar tempo e espaço para respirar na plenitude.

Nos dois primeiros álbuns (Solo Star de 2002 e Sol-Angel and the Hadley St. Dreams de 2008) sentia-se que andava à procura. E em A Seat At The Table (2016) encontrou-se. Era o tipo de disco que se ouvia de um só fôlego, sendo ao mesmo tempo um testamento pessoal e comunitário sobre a experiencia da negritude nos Estados Unidos, empregando uma perspectiva tão pessoalizada quanto socializada, onde qualquer um se poderia projectar. Desse ponto de vista o novo trabalho não é assim tão diverso.

É outra vez Solange a reivindicar um lugar na história, e no presente, dos Estados Unidos das formas culturais afro-americanas. É ela outra vez a pôr em causa preconceitos. E é ela também outra vez a colocar-se em causa. Porque sendo verdade que é uma obra de continuidade, é mais arriscada e exploratória. Muitos achavam que iria regressar vibrante e dançante. Mas o que temos é abstracção, sensualidade e uma sonoridade calorosa e que flui mas que também arrisca. O que bem vistas as coisas não é assim tão surpreendente para quem a tem acompanhado.

Afinal falamos de alguém que nos últimos tempos tem criado acontecimentos e performances em instituições de arte (do Guggenheim de Nova Iorque, à Tate Modern de Londres), misturando musica, movimento, multimédia e escultura, expandido os contextos onde o seu trabalho tem vindo a ser apresentado, o que não a fará abandonar os palcos convencionais – em Junho estará no Nos Primavera Sound do Porto. A forma como mistura géneros e formas – tanto no álbum como no filme de meia-hora – acaba por ser sempre consistente, a política a ecoar nos gestos, seja quando utiliza referências que podem originar leituras biográficas ou quando faz uso de imagens ou referências que fazem parte do imaginário colectivo. Aos 32 anos está no topo, sem facilitismos.

Não só se emancipou da sombra da irmã, como se permite operar hoje com alguma dose de liberdade no seio das indústrias culturais, ao mesmo tempo que construiu uma relação de confiança com os admiradores: dela já se espera que seja capaz de oferecer o inesperado. E no novo álbum isso volta a suceder.

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