O jazz de João Lencastre é terra de contrastes
No espaço de um mês, o baterista João Lencastre apresenta duas versões do seu projecto Communion. Ao Festival Lisboa Jazz levará a formação alargada; este sábado, no CCB, é a vez do trio que gravou Movements in Freedom.
Poucos devem ser os géneros musicais que escaparam, até hoje, ao largo espectro que João Lencastre cobre com a sua bateria. Do reggae ao heavy metal, do punk à electrónica, do indie rock ao afrobeat, a sua marca está dispersa por uma série de projectos demasiado numerosa para listar. Mas para darmos apenas um par de exemplos, apontemos holofotes para os Blasted Mechanism e os Cacique 97. Com a passagem dos anos, no entanto, o baterista praticamente limitou a sua actividade pop/rock à banda de Tiago Bettencourt e reorientou esse mesmo foco cada vez mais para a sua actividade enquanto músico e compositor a operar no jazz e na música improvisada.
Nesse universo particular, João Lencastre foi tocando com vários nomes de proa do circuito nacional e internacional até que, em 2007, se aventurou na edição do seu primeiro álbum enquanto líder. Chamou a essa formação João Lencastre’s Communion e foi sob tal designação que editou, quase de rajada, One! (2007), B-Sides (2008) e Sound it Out (2010). Aquilo que Communion concretizava era também a lança de Lencastre na cena nova-iorquina, fazendo-se acompanhar, em One!, por um colectivo que incluía Phil Grenadier, Bill Carrothers, André Matos e Demian Cabaud, na interpretação de temas de Ornette Coleman, Freddie Hubbard, George Gershwin e Björk.
Essa fase de afirmação de João Lencastre consagraria Communion como o seu projecto de maior alcance criativo, chamando para a sua formação outros músicos destacados da cena norte-americana como David Binney, Leo Genovese, Thomas Morgan e Jacob Sacks, ao mesmo tempo que as suas autorias adquiriam um peso crescente no colectivo. Cada nova viagem a Nova Iorque proporcionava novos encontros com estes músicos e a música, apesar de lutar contra a distância geográfica, foi ganhando uma maior robustez – de que What Is This All About? (2014) é exemplo perfeito.
Numa dessas últimas viagens, o músico levou consigo uma colecção de temas que começou a parecer-lhe especialmente adequado ao formato de piano trio, tendo chamado para um par de actuações Jacob Sacks (piano) e Eivind Opsvik (contrabaixo). “Funcionou mesmo muito bem ao vivo”, recorda ao PÚBLICO, “daí ter insistido no grupo. Fizemos mais alguns concertos e gravámos um primeiro disco.” É o resultado da música registada nesse disco, Movements in Freedom (2017), que passará este sábado pelo Centro Cultural de Belém, interpretado por esse mesmo trio a que o baterista chamou Communion 3. “A manutenção do nome tem que ver com o facto de me assumir enquanto líder com o Communion, mas também com a visão”, explica. “Era sobretudo a ideia de liberdade de interpretação da música escrita que queria continuar.”
Este Communion 3 parte do natural fascínio de João Lencastre por trios clássicos como os de Bill Evans, Keith Jarrett e Ahmad Jamal, mas também mais de recentes como aqueles que Bill Carrothers, Craig Taborn e Kevin Hays comandam. Se o formato trio, por definição, abre a sonoridade para uma abordagem mais livre, devido aos espaços que cria entre os músicos, João procurou associar a essa liberdade um lado mais enfático de improvisação em tempo real que se tornou um ponto de chegada claríssimo na escuta de Movements in Freedom. Da abordagem a um tema alheio, Street woman de Ornette Coleman, o trio avança para três composições do baterista e finaliza com uma série de seis improvisações em que obedece apenas àquilo que o momento ditou em estúdio.
Lencastre tem explorado regras semelhantes noutras duas formações que mantém em actividade – o No Project Trio, com João Paulo Esteves da Silva e Nelson Cascais, ou o trio partilhado com Rodrigo Amado e Hernâni Faustino –, mas em Communion é sobretudo a relação entre música escrita e absolutamente livre que toma as rédeas. Até porque é sobretudo na zona dos contrastes que Lencastre gosta de se mover. “Gosto tanto de uma abordagem sem papéis e sem composição, como gosto da liberdade na escrita e de grooves muito secos”, diz. “Se não houver contrastes, a música torna-se uma seca. Gosto de contrastes bem dramáticos, nas dinâmicas e na intensidade, de ir do mais abstracto ao mais coeso possível.”
E nada melhor para perceber o alcance das palavras de João Lencastre do que testemunhar este sábado a actuação do Communion 3 – que gravará nos dias seguintes novo disco, mais permeável às investigações sobre electrónica e sintetizadores que tem levado a cabo –, e passar depois pelo Teatro São Luiz, a 30 de Março, para assistir ao Communion em formação alargada e sediada em Portugal (Ricardo Toscano, Albert Cirera, André Fernandes, João Paulo Esteves da Silva, Pedro Branco, Nelson Cascais e João Hasselberg), no primeiro Festival Lisboa Jazz.