Como comprar obras de arte para um museu
O Museu Gulbenkian, que em 2019 faz 50 anos, decidiu criar uma estratégia para as suas aquisições. As 72 obras de arte compradas no ano passado já reflectem uma nova maneira de pensar a Colecção Moderna.
Com uma obra intitulada O Coleccionador, datada de 1989, Manuel João Vieira, artista plástico, músico e eterno candidato a Presidente da República, vai passar a estar representado no Museu Gulbenkian, em Lisboa, na sua parte dedicada ao século XX e XXI, a Colecção Moderna. Ivo e Fernando Brito, outros dois membros do Grupo Homeostético, um dos mais irreverentes movimentos plásticos dos anos 80, também vão entrar na colecção. Do grupo, só estavam representados Pedro Proença, Xana e Pedro Portugal.
Para já, a obra de Manuel João Vieira está nas reservas do Museu Gulbenkian e ainda não se sabe quando vai ser mostrada ao público. É uma metapintura, com vários quadros dentro de um quadro: ao centro, sentado numa cadeira, uma representação do próprio Calouste Gulbenkian — ou será de Pedro Cabrita Reis, um dos mais importantes artistas contemporâneos portugueses?
A Colecção Moderna, com 11.333 mil obras de arte, é dedicada, principalmente, à arte produzida em Portugal desde 1900, um contraponto à Colecção do Fundador, resultado das aquisições de Calouste Gulbenkian, que vai do Antigo Egipto ao início do século XX e é exclusivamente estrangeira.
Logo em 1957, um ano depois de a Fundação Gulbenkian ter sido criada, foi estabelecido um fundo de aquisições de obras de arte contemporânea, mas a Colecção Moderna só viria a ser oficialmente constituída com a inauguração do Centro de Arte Moderna (CAM) em 1983. Para a Colecção do Fundador, um acervo fechado que deve reflectir o gosto de Calouste Gulbenkian, só excepcionalmente se fazem compras.
Como a entrada da nova directora Penelope Curtis em 2016, altura em que também foi extinto o CAM, as duas colecções passaram a constituir, em conjunto, o Museu Gulbenkian.
Foi em 2013 que a Gulbenkian passou a dispor de uma verba anual de meio milhão de euros para fazer aquisições de novas obras de arte, explica Teresa Gouveia, a administradora da fundação com o pelouro do museu, que tem um orçamento global anual de 7,3 milhões de euros (números de 2017). Se olharmos para os cinco anos anteriores, de 2008 a 2012, perceberemos que o museu investiu em compras cerca de 1,5 milhões de euros, enquanto de 2013 a 2017 se atingiram os 2,23 milhões.
“A subida tem a ver com a análise de que a compra de obras é uma maneira de ajudar a criação contemporânea, sobretudo num momento de crise. Em 2013, um ano altamente difícil, a fundação entendeu que era preciso estar presente de uma maneira mais significativa”, explica Teresa Gouveia.
"Nem sempre a fundação foi tão sistemática a comprar", reconhece a administradora. Nos próximos anos, acrescenta, o valor deverá manter-se.
Forças e fraquezas
Há um ano, um documento elaborado por Penelope Curtis identificava as “forças e fraquezas” da Colecção Moderna: tem "lacunas importantes", porque “é muito inconsistente antes de 1960”, e para merecer o lugar “proeminente” que tem reclamado “devia ser melhor”.
O estudo exaustivo da Colecção Moderna foi feito durante um ano, em 2016-17. “Em relação ao princípio do século, fora o Amadeo de Souza-Cardoso, de que temos 200 obras, há peças boas mas não são muitas. Temos grandes nomes, como o Almada e o Eloy, mas temos escassas segundas linhas como o Abel Manta ou Armando Basto", diz Vasconcelos. Apontaram-se muitas inconsistências antes de 1960, especialmente em relação à escultura. Onde é que estavam os escultores que trabalharam para o regime ditatorial de Salazar? “Na colecção, foram privilegiados muitas vezes artistas que também trabalham para o Estado Novo, mas que vendiam ou doavam à Gulbenkian peças mais modernistas”, explica Ana Vasconcelos, curadora da Colecção Moderna.
Foi este diagnóstico que levou o Museu Gulbenkian a concluir que era necessário fazer aquisições de forma mais estruturada — “apoiar-se menos em reacções a propostas externas e mais na proactividade do trabalho de equipa”.
Comprar uma obra implica agora um processo com várias etapas. A situação de alguém iluminado querer comprar uma obra, diz Teresa Gouveia, "não existe". "E quando alguém diz 'Tenho uma obra para vender, senhor administrador’, o administrador envia para o processo.”
Há um conjunto de “boas práticas comuns aos museus internacionais” que Penelope Curtis trouxe da sua experiência em instituições como a Tate Gallery, acrescenta Ana Vasconcelos. “Isto tem revertido para nós em bastante mais trabalho, mas também numa relação mais forte com a área das aquisições."
De todas as compras de 2018, só uma caricatura feita por Jorge Barradas (1894-1971), que representa José Pacheko (1885-1934) e é datada de 1912, foi uma proposta externa. “Foi reproduzida na Colóquio-Arte em 1977, uma revista publicada pela Gulbenkian, e vem reforçar o núcleo de caricaturas do modernismo nascente”, explica Ana Vasconcelos.
São 20 os artistas a quem a Fundação Gulbenkian comprou 72 obras em 2018, precisa Ana Vasconcelos, uma das quatro mulheres, juntamente com Rita Fabiana, Leonor Nazaré e Patrícia Rosas, que participam internamente neste processo coordenado por Penelope Curtis. Além de se procurar acompanhar a carreira dos artistas portugueses vivos, dos consolidados aos emergentes, dos mais velhos aos mais jovens, há agora a preocupação de preencher as lacunas históricas da Colecção Moderna.
Em 2018, a Gulbenkian terá gasto cerca de sete mil euros por obra, se repartirmos o orçamento de 500 mil euros pelas 72 peças compradas. Mas este é um raciocínio que para Teresa Gouveia não faz sentido porque, como todas as médias, é um valor enganador. “Não há nenhum limite para o valor mais alto, para além do bom senso. Já houve anos excepcionais, como aquele [2006] em que a fundação comprou um Amadeo de Souza-Cardoso [Avant la Corrida] que estava perdido, por 350 mil euros, mas essa foi uma dotação especial.”
A instituição tem o hábito de não revelar o valor pelo qual adquire as obras de cada artista, mas esclarece que as balizas das compras feitas em 2018 se fixaram entre os mil e os 36.900 euros.
Além dos novos homeostéticos, uma das grandes novidades das compras feitas agora é a incorporação de duas obras de Ernesto de Sousa (1921-1988): Luís Vaz 73, de 1975, mixed-media com música de Jorge Peixinho, e Olympia, de 1979, composta por 41 fotografias. Cineasta, fotógrafo, performer e também curador, Ernesto de Sousa foi uma figura multifacetada fundamental para a renovação das práticas artísticas em Portugal na segunda metade do século XX e a Gulbenkian ainda não tinha nenhuma peça sua. O artista deixou uma obra bastante reduzida e a sua faceta artística ganhou maior visibilidade nos últimos anos, justifica Ana Vasconcelos.
Mas há ainda mais quatro artistas com percurso já consolidado que vão igualmente estrear-se na colecção através das compras de 2018: Silvestre Pestana (Funchal, 1949), com duas colagens; Paulo Catrica (Lisboa, 1965) com 13 fotografias; António Cerveira Pinto (Macau, 1952), com dois desenhos; e Miguel Soares (Lisboa, 1970), com cinco vídeos.
Entre as 72 obras adquiridas este ano, estão também obras de Fernando Lemos, Cruzeiro Seixas, Jorge Vieira, José de Guimarães, Teresa Magalhães, Manuel Baptista, Ângela Ferreira, Ana Jotta, Luísa Jacinto, Grada Kilomba, Kiluanji Kia Henda e Praneet Soi. Alguns dos critérios têm a ver com o acompanhamento da obra de artistas emergentes (Luísa Jacinto), de artistas ligados à lusofonia (Grada Kilomba ou Kiluanji Kia Henda), ou ainda com a memória de artistas que tiveram exposições temporárias na Gulbenkian (Teresa Magalhães, José de Guimarães, Praneet Soi).
Isto sem contar com as doações, que são tecnicamente consideradas aquisições, explica Ana Vasconcelos. Foram 18 obras no ano passado: incluem alguns destes nomes, como José de Guimarães ou Cruzeiro Seixas, bem como obras de João Cutileiro — nove esculturas —, Pedro Valdez Cardoso, Rosa Fazenda e Mariana Silva — cada um com uma peça.
"Um trabalho estruturante"
Ana Vasconcelos, que já trabalhou com três directores, diz que até aqui as aquisições eram “uma prerrogativa exclusiva” do director do CAM, com o aval final da administração, só com “envolvimentos pontuais” da equipa de curadores.
Jorge Molder, um dos directores anteriores do CAM, responsável por várias aquisições para a Colecção Moderna, desconfia de um sistema em que as compras respondam a um organograma excessivo, incluindo uma comissão. “As comissões são sistemas de negociações e podem ser de mérito duvidoso”, defende Jorge Molder, que também é artista e participou, embora brevemente, na comissão do Fonds National d’Art Contemporaine, exactamente por não concordar com o modelo. “Do meu ponto de vista, é preferível escolher alguém que tenha um gosto que possa satisfazer os critérios de uma colecção, mas essa pessoa pode trabalhar em equipa. No meu tempo não havia um sistema formal, mas claro que falava com algumas pessoas com quem trabalhava.”
Na direcção de Isabel Carlos, que não quis prestar declarações, as compras não eram discutidas com a equipa de curadoras como agora, mas houve a preocupação de envolver um conselho consultivo criado para assessorar o trabalho no antigo CAM. Entre outras funções, ao conselho, com representantes de instituições internacionais, entre as quais a própria Penelope Curtis, então directora da Tate Britain, também cabia debruçar-se sobre as compras propostas pela directora do CAM.
As actuais listas de aquisições são postas à discussão três vezes por ano por uma comissão consultiva externa criada em 2016. Até agora, fizeram parte da comissão Raquel Henriques da Silva, Manuel Costa Cabral, Lúcia Almeida Matos e Nuno Faria, numa mistura entre historiadores de arte e curadores.
“É um conjunto de pessoas com várias experiências, representando gerações e geografias diferentes”, afirma Nuno Faria, director artístico do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. “Significa um esforço para ajudar a pensar a colecção a médio termo, sem estar sujeita a uma navegação à vista, mas como uma coisa pensada e estruturada como um todo.” O órgão de que faz parte, acrescenta, só aprova as listas, não faz qualquer contraproposta.
Com a direcção e as curadoras, a comissão ajudou a criar a política de aquisições, continua Nuno Faria: “Discutimos muito os critérios e fizemos uma reflexão sobre as zonas da colecção mais ou menos deficitárias, um trabalho estruturante para se poder avançar para as aquisições. A fundação é seguramente a instituição em Portugal que mais estruturadamente está a fazer o trabalho de coleccionar.”
Ana Vasconcelos cita o estudo da Colecção Moderna para definir o acervo, além do âmbito mais restrito da arte produzida em Portugal a partir de 1900, uma nova baliza cronológica que veio substituir a data de 1911 inspirada no cânone definido pelo historiador de arte José-Augusto França: “Ela procura também representar a produção de artistas portugueses emigrados ou de artistas de outras nacionalidades que vivam e desenvolvam a sua actividade artística em Portugal. Valoriza os contactos entre artistas portugueses e de outras nacionalidades e a produção artística realizada em países que tenham laços históricos com Portugal (PALOP, Brasil, entre outros).”
Por circunstâncias históricas, a colecção tem alguns núcleos fortes estrangeiros, principalmente as quase 500 obras de arte britânica. “Da Escola de Londres, temos David Hockney e Michael Andrews, mas não outros nomes mais sonantes como Lucian Freud ou Francis Bacon.”
O diagnóstico feito pela actual equipa identificou cinco caminhos para a Colecção Moderna ser merecedora do seu nome: “Mais representativa em termos históricos; mais diversificada a nível dos suportes e das técnicas; mais expressiva em relação aos momentos-chave e artistas internacionais; mais representativa no que diz respeito a mulheres artistas; mais relevante relativamente à prática artística de países lusófonos.” Quando algumas das falhas forem preenchidas, a Colecção Moderna deverá mostrar-se mais articulada com a história da arte e, por isso, um melhor recurso de ensino.
O primeiro ano em que existiu uma pré-estratégia com a curadoria, a direcção e a comissão a trabalharem em conjunto foi o de 2018. “O que revela a análise das compras feitas é que temos estado mais activos a suprir lacunas do que em comprar emergentes que estão a fazer primeiras ou segundas exposições públicas.” Quando Ana Vasconcelos olha para a lista de 2018, só vê, na verdade, obras e artistas que caem no critério das “lacunas”, à excepção de Luísa Jacinto.
Nuno Faria, da comissão consultiva, conta que “a ponderação entre o reforço das lacunas históricas e a incorporação de novos artistas tem sido uma das principais preocupações e constituiu uma parte importante da discussão do primeiro ano”. E acrescenta: “Fazer uma colecção implica escolhas.”