Uma menina de 11 anos queria abortar depois de ser violada; fizeram-lhe uma cesariana

Caso de desrespeito de uma ordem do tribunal e do direito de uma criança que sofreu abusos choca a Argentina, um país dividido pela luta ao acesso à interrupção voluntária da gravidez.

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"Meninas e não mães": manifestação à porta do hospital em Tucumán Aitor Pereira/EPA

Uma criança argentina de 11 anos que engravidou por ter sido violada pelo marido da sua avó teve permissão do tribunal para abortar. Mas enfrentou a rejeição dos médicos do hospital ao qual foi encaminhada, que alegaram objecção de consciência. A única médica que aceitou fazer o procedimento enganou-a: uma vez anestesiada, fez uma cesariana, sem consentimento da criança ou da sua família, em vez de um aborto.

O caso, que aconteceu na província de Tucumán, gerou grande indignação e protestos nas ruas. A menina apresentava sintomas de pré-eclampsia, que punham em risco a sua vida e a do bebé, diz a médica que fez a cesariana, citada pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo. Por isso decidiu fazer a cesariana, sem pedir autorização.

A gravidez já estava avançada: quando o pedido formal de aborto foi apresentado, no fim de Janeiro, já estava na 19.ª semana. Mas a Justiça levou três semanas a deliberar sobre o caso. Por isso, outros médicos do Hospital Eva Péron, em Tucumán, recusaram fazer o aborto, considerando que seria uma operação de alto risco.

A médica que fez a cesariana, na verdade, não pertencia ao quadro do hospital – fazia clínica privada e foi chamada, porque todos os médicos do hospital se tinham recusado a tratar a menina. Ela e o marido realizaram a intervenção, já depois da meia-noite, diz o jornal argentino Clarín. “Teve de vir um anestesista de outro sítio e eu tive de ajudar o meu marido”, contou a médica, Cecilia Outsset.

“A verdade é que não se podia esperar um parto por via vaginal, porque o corpo dela não estava desenvolvido e não tinha condições psicológicas, por causa dos abusos que sofreu”, relatou Outsset.  

A menina foi internada em Janeiro, por ter uma gravidez de alto risco. Deram-lhe medicação para apressar a maturação do feto. E foi permitida a entrada nas instalações de organizações “pró-vida”, para ver a criança grávida, fazendo-se passar por médicos, relata ainda o Clarín.

Estas histórias foram sendo conhecidas e na terça-feira uma juíza tornou claro que era preciso cumprir a determinação do tribunal e fazer o aborto. O Ministério da Saúde da província de Tucumán reproduziu a ordem, mas com uma pequena e significativa alteração: “É preciso salvar as duas vidas.” Daí o procedimento feito pelos médicos ter sido a cesariana e não a interrupção voluntária da gravidez.

O tribunal supremo provincial esclareceu que a ordem do ministro da Saúde local “não reflecte o expediente judicial”. A menina não queria ser mãe, não é o que estipula o Código Penal, nem o Supremo Tribunal para estes casos. E, para as Nações Unidas, a maternidade forçada é uma forma de tortura.

A Argentina está a passar por uma grande mobilização feminina para a legalização do aborto – que só pode ser feito em caso de violação, risco de morte da mãe e malformação do feto. No Verão passado, houve uma enorme discussão pública sobre o assunto e grandes manifestações encheram as ruas de Buenos Aires, numa tentativa de pressionar o Parlamento a aprovar uma nova legislação que legalizasse a interrupção voluntária da gravidez até às 14 semanas.

A nova lei foi chumbada, por sete votos de diferença. O Governo ficou de estudar formas de despenalizar o aborto indirectamente, talvez através da reforma do Código Penal que estava a ser preparada. Mas, por ser um tema que claramente divide a sociedade argentina, foi adiado para a próxima legislatura – este é ano de eleições, para o Congresso e para a presidência, e espera-se que o assunto do aborto seja um dos polémicos a marcar a campanha.

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