A cidadania também é uma questão de cultura
A noção de cidadania é algo que a cultura do espírito não deve ignorar, na sua formação primária.
A Casa da Democracia (o parlamento) abriu-se esta terça-feira à Casa da Cidadania, no que constituirá um acto simbólico de aproximação entre eleitos e movimentos sociais. Antes de falarmos da essência de tal acto (a 3.ª Conferência Anual da Plataforma de Associações da Sociedade Civil – Casa da Cidadania, reunida desta vez na Sala do Senado da Assembleia da República), recuemos na História, em busca das origens da moderna noção de cidadania que, sendo designação muito antiga, adquiriu um novo significado a partir do século XVIII.
O Dicionário Etimológico de José Pedro Machado, ao procurar “o sentido moderno” de tal palavra, encontrou as suas origens prováveis em França. Terá sido em Outubro de 1774, quando Pierre-Augustin Beaumarchais (1732-1799), dramaturgo, autor de O Barbeiro de Sevilha ou As Bodas de Fígaro, usou a palavra “cidadão” num contexto de litígio, após ter sido processado por um conselheiro de Paris. Terá dito Beaumarchais: “Eu sou um cidadão; não sou nem um banqueiro, nem um abade, nem um cortesão, nem um favorito, nada daquilo que se chama uma potência; eu sou um cidadão, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de imprevisto e de desconhecido em França; eu sou um cidadão, quer dizer, aquilo que já devíeis ser há duzentos anos e que sereis dentro de vinte talvez!” Não se enganava: em 1791, a Constituição nascida da Revolução Francesa (1789-1799) deu o qualificativo de cidadão (citoyen) a todo e qualquer membro do Estado, substituindo o anterior tratamento de senhor e senhora (monsieur e madame). E a Marselhesa, hino composto nos fervores revolucionários, em 1792, registou o “Aux armes, citoyens” (às armas, cidadãos) que ainda hoje se mantém, apesar das muitas mudanças desde então.
Em Portugal, a noção de cidadania é ensinada nas escolas – embora, como foi lembrado e bem na sessão de terça-feira, as crianças estejam mais absorvidas pelas disciplinas que lhes dão “luz verde” nos exames, como a Matemática, acabando por deixar a cidadania num plano secundário. Mas o exercício da cidadania, no conhecimento e no assumir dos direitos e deveres que a cada cidadão cabem e competem enquanto tal, é algo que se vai aprendendo ao longo da vida e na prática: na família, no jardim-escola, nas escolas, nas empresas, nas muitas instituições e organizações com que se vai lidando. E se cultura é, na sua essência, a cultura do espírito (e daí que, por hábito, a associemos primeiramente às artes), a noção de cidadania é algo que essa cultura do espírito não deve ignorar, na sua formação primária.
O que ocorreu, terça-feira, na Sala do Senado, foi um encontro de cidadãos e movimentos de cidadãos, ao apelo de uma plataforma que os congrega; mas a diferença essencial entre estes movimentos e as instituições da democracia representativa personificada na assembleia de deputados é que, sendo estes últimos eleitos pela generalidade dos cidadãos, a sua agenda rege-se essencialmente pelos temas que ocupam a governação ou que a interpelam; ao passo que os movimentos de cidadãos (a chamada democracia participativa) se movem por causas locais, regionais ou nacionais, são voluntários, e o seu grau de empenhamento não é medido por uma obrigatoriedade institucional mas unicamente pela sua perseverança. Há, por isso, movimentos ou associações que soçobram e outros que vingam e não desistem até darem por terminada a missão que os motivou. Portugal, onde a participação cidadã não será ainda tão forte quanto noutros países europeus mas é ainda assim muito activa, está aos poucos a acertar os mecanismos institucionais que permitam uma maior participação. O que quer isto dizer? Que todos os movimentos (sociais, culturais) existentes devem estar atentos às possibilidades que se vão abrindo, maximizando o seu uso na defesa daquilo que julgam justo (e que, muitas vezes, começa por estar longe de ser consensual). São batalhas que se travam, num avaliar constante de razões, até garantir desfecho consciente a cada uma.
No final da sessão (onde participaram também vários deputados), foi atribuído o prémio Cidadania 2019 à ASTA - Associação Sócio-Terapêutica de Almeida (Instituição Particular de Solidariedade Social para apoio, integração e educação de jovens com deficiência intelectual e multideficiência) e uma menção especial a Miguel Duarte, estudante, um dos voluntários do navio Iuventa, pertencente a uma ONG alemã de resgate humanitário no Mediterrâneo e arrestado na Sicília desde Agosto de 2017 por alegado auxílio à imigração ilegal. Distinções que, no caso português, mais não são do que um apelo ao reforço e à consciência cidadã como esteio da vida democrática. Sem esperar outra recompensa que não o bem-estar e felicidade alheios porque, de outro modo, será outro o seu lugar, não aqui.