Laços de família, risco de corrupção e conflitos de interesse
Irritou-me ver tantos a negar que ter pessoas da mesma família no Governo gera conflitos de interesses em catadupa.
Desde o início, chocou-me que neste Governo se tivesse marido e mulher como ministros e uma secretária de Estado filha de um outro ministro. Com a promoção de Mariana Vieira da Silva a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, a polémica estalou. Qual é o problema? Esta foi a pergunta que tantos fizeram perante as críticas. A resposta é simples: nomear governantes unidos por laços familiares facilita acusações de nepotismo, gera compadrio, cria um manancial de conflitos de interesses e facilita a corrupção.
Nepotismo — do italiano nipote/sobrinho — é, de acordo com a organização Transparency International, definido como uma forma de favoritismo, em que alguém usa a sua autoridade oficial para fazer um favor a um familiar ou amigo, como arranjar um emprego. Anda de mãos dadas com o cronyism/compadrio. De acordo com a mesma organização, este assunto interliga-se ao das dinastias políticas que acontecem quando algumas famílias dominam o processo político. Que haja quem negue que as nomeações de António Costa se possam encaixar nesta definição revela a falta de honestidade que grassa no debate público: em vez de comentadores, temos porta-vozes de facções políticas.
Irritou-me ver tantos a negar que ter pessoas da mesma família no Governo gera conflitos de interesses em catadupa. Basta ler o Código de Procedimento Administrativo (CPA) sobre os casos de impedimento para o perceber. De acordo com o CPA (artigo 69.º, número 1, alínea e), quando alguém tenha intervindo como perito ou mandatário num dado procedimento fica o seu cônjuge (ou parente em linha directa) impedido de intervir. Por exemplo, se uma professora tiver orientado uma tese de mestrado, fica o seu marido impedido de fazer parte do júri desse mestrado. Nos júris de bolsas de doutoramento da FCT, os jurados estão impedidos de discutir pedidos de bolsa que envolvam estudantes cujos orientadores tivessem, no passado, sido seus co-autores. Portanto, o Estado considera que até as relações mais ténues são geradoras de conflitos de interesses. Mas dizem-nos que é absurdo que se avente a hipótese de um ministro ou ministra não ser imparcial ao avaliar, por exemplo, uma lei importante proposta pela sua filha ou pelo seu marido e cujo sucesso pode ser determinante para o seu futuro político.
Também surpreende que se recuse sequer a ideia de que ter agregados familiares no governo facilita a corrupção, como se não fosse evidente que a sua existência contribui para que as decisões e jogos de influência funcionem em circuito fechado. Só por desonestidade se pode negar que a cumplicidade entre pai e filha ou marido e mulher diminuem a probabilidade de que haja denúncias de más práticas.
Estou a acusar o ministro Vieira da Silva e a sua filha, a ministra Mariana Vieira da Silva, de corrupção? Ou estou a dizer que o ministro Eduardo Cabrita põe cunhas junto da sua mulher, Ana Paula Vitorino? Não, estou a dizer que essa possibilidade existe e que o escrutínio se torna mais difícil e menos transparente. Em política, como argumentei há umas semanas, a lisura de procedimentos é condição sine qua non para uma democracia de qualidade. Num país com os problemas de corrupção e de falta de transparência como o nosso, devia ser prioritário evitar situações destas.
Quer isto dizer que nunca podemos ter familiares directos no mesmo governo? Não vou tão longe, mas quando assim é há um ónus de explicação que não nos foi dada. Por que motivo é assim tão imprescindível ter Eduardo Cabrita na pasta da Administração Interna e Ana Paula Vitorino na pasta do Mar? O que sabe Mariana Vieira da Silva sobre Modernização Administrativa? São estas pessoas o supra-sumo das suas pastas? Não há mais ninguém no país capaz para estas funções?
Sobre Mariana Vieira da Silva, muita gente veio a terreiro explicar que foi promovida porque “toda a gente sabe que ela é fantástica”. Como “toda a gente sabe”, não carece de explicação. Mas eu não sei. Tentei informar-me e respondem-me sempre o mesmo: todos sabem. No Expresso, dizem-nos sobre Mariana Vieira da Silva que "não há quem não lhe reconheça dedicação e empenho num trabalho político de bastidores que raramente é premiado". Mas se o trabalho é de bastidores, então, por definição, é impossível conhecê-lo, quanto mais reconhecê-lo. Do Expresso esperava mais jornalismo e menos amiguismo. Aliás, fico com a ideia de que Mariana Vieira da Silva tem muitos amigos e que só os amigos é que sabem. Tudo bem, mas expliquem-nos. O seu amigo Pedro Mexia falou-nos do seu excelso percurso académico quando nem doutorada é. Obviamente que quem foi assessora da ministra da Educação entre 2005 e 2009 e adjunta de um secretário de Estado entre 2009 e 2011, voltando ao governo em 2015, não pode ter qualquer carreira académica. É uma política profissional. Como me dizia uma amiga, chamam carreira académica ao que se faz quando o nosso partido não está no governo.
A cereja no topo do bolo dos argumentos pró-Mariana foi um artigo de Daniel Oliveira no Expresso. Além de nos informar que toda a gente sabe que ela é fantástica, diz-nos que "foi formalmente promovida a uma função que na prática já desempenhava". A ânsia de a defender é tão grande que qualquer disparate vale. Ela vai ocupar a pasta da Modernização Administrativa. Como é que isto é fazer o mesmo que fazia quando era secretária de Estado adjunta do primeiro-ministro?
Daniel Oliveira ainda nos fala no fardo que é ter um pai tão destacado e de como isso é cruel. À esquerda passamos a vida a falar da necessidade de trazer mais mulheres e mais diversidade para os governos. Dizemos que é necessário obrigar as organizações a procurar os melhores quadros, em vez de, por preconceito ou preguiça, se limitarem a ir buscar homens. Alegamos que é um mito a ideia de que é por mérito que são sempre os homens os escolhidos. Mas não percebemos que o mesmo argumento se aplica a ir buscar pessoas fora das mesmas famílias de sempre? Se é ridículo dizer que não há mulheres capazes, mais ridículo é dizer que não há ninguém capaz fora da família. O país não é assim tão pequeno nem tão desprovido de competência.
Mas se Mariana Vieira da Silva é extraordinária e sabe como ninguém modernizar a administração, que saia o pai. O ministro Vieira da Silva já esteve no governo de Guterres e nos governos Sócrates. Foi importante, concretizando uma necessária reforma da Segurança Social, mas, neste momento, não está à altura dos desafios que temos pela frente. Gere a conjuntura perante enormes problemas estruturais que a Segurança Social enfrenta. Dê então a vez à filha.