Violência doméstica: um “buraco” na lei que pode ceifar vidas
Não faz qualquer sentido exigir o consentimento do condenado para aplicar somente uma pulseira electrónica
A jornalista Ana Henriques teve a amabilidade de me ouvir a propósito da notícia desta segunda-feira no PÚBLICO. Gostaria de aproveitar este espaço para esclarecer a minha posição sobre a controvérsia jurídica.
Enquanto medida de coacção processual (art. 31.º, n.º 1, als. c) e d) da Lei n.º 112/2009, de 12/9 (“Lei da VD”), ou seja, como forma de tutela provisória enquanto o arguido não é julgado e, por isso, goza da presunção de inocência, de entre outras, uma das mais usadas quando está indiciado o crime de violência doméstica (VD) é a proibição de contactos fiscalizada por vigilância electrónica (VE). Neste caso, a lei dispensa o consentimento do arguido, por entender que, no sopesamento entre os seus direitos e a essencial protecção da vítima, esta última deve sobrelevar. A regra da chamada “Lei de VE” (Lei n.º 33/2010, de 2/9) é a da exigência de consentimento (art. 4.º), mas a “Lei da VD” excepciona-o, por regra, no seu art. 36.º (de resto previsto no art. 26.º, n.º 2 da primeira).
Diz o art. 35.º, n.º 1 da “Lei da VD”: “O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do CP, no artigo 281.º do CPP e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”.
O art. 36.º, n.º 1 proclama: “A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.”, mas o n.º 7 refere “Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima.”.
Já quando a mesma medida é aplicada como pena acessória (art. 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP: “4 - (…) podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima (…), pelo período de seis meses a cinco anos (…)”; “5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”), ou seja, como sanção para além da pena principal de prisão, no sentido de reforçar o seu efeito, a lei determina que a dita proibição de contactos exige o consentimento do condenado e um acrescido dever de fundamentação, no sentido em que a VE é essencial para proteger a vítima, obviamente nas hipóteses – as mais comuns – em que o condenado vê a prisão efectiva substituída por outra medida, em regra, a pena suspensa.
Ora, é certo que este é o quadro vigente e, por isso, não havendo consentimento do condenado para a VE, mesmo assim pode ultrapassar-se essa falta quando o juiz fundamente cabalmente a urgência da sua aplicação, pelo que é tecnicamente incorrecta a decisão de um tribunal superior que revogue a de 1.ª instância apenas e tão-só com base na falta de consentimento do condenado, já o podendo fazer, todavia, se a decisão recorrida se não achar devidamente fundamentada. Mas mesmo em hipóteses destas, a solução correcta, para mim, seria sempre reenviar o processo para o tribunal de onde se recorre, para este suprir esse vício e não, como se vem fazendo, revogar a VE (cf. art. 426.º do CPP).
Como pena acessória que é, em regra, não faz qualquer sentido exigir o consentimento do condenado para aplicar somente – e é disso que se trata – uma concreta forma de fiscalização do seu cumprimento. Por definição, as penas, em si mesmas, não exigem o acordo do condenado. De outra forma, seria o sentido de “pena” sujeito ao ridículo e obviamente que ninguém consentiria em tal. Se é assim para a sanção de per se, entendo que, por maioria de razão, o devia ser para o mecanismo concreto de fiscalização.
É evidente que se poderiam encontrar outros, desde logo ter um polícia a vigiar o condenado por VD, mas é óbvio que isto não é praticável, à cabeça por razões económicas. Mais ainda: quando o arguido se presume inocente, antes de decisão transitada, a lei não exige o seu consentimento para a VE, mas , depois de se confirmar que ele é culpado, então aí a lei confere-lhe um direito que, a meu ver, não ter qualquer sentido. Dir-se-á que existe uma limitação de direitos fundamentais sempre que se aplica a VE. Por certo. Mas também sabemos que quando há direitos como estes que conflituam, a segurança da vítima deve sobrepor-se, na medida em que se acha claramente acima na escala de valores constitucionais.
Donde, sem prejuízo de defender uma alteração urgente ao art. 36.º da “Lei da VD”, no sentido de prescindir do consentimento do condenado nas hipóteses em que a pena acessória de proibição de contactos é aplicada, é minha convicção que, já hoje, o entendimento patrocinado no acórdão que serve de base à notícia e de tantas outras decisões em idêntico sentido, é materialmente inconstitucional, por vulnerar as garantias de defesa da vítima e o princípio da proporcionalidade entre os interesses em jogo (cf., respectivamente, os artigos 32.º, n.º 7 e 18.º da CRP).
Protecção até o julgamento
Outra interpretação abre caminho à solução juridicamente aberrante de a vítima estar mais protegida até ao julgamento – em que ainda se não sabe se o agente cometeu ou não o crime – que depois dele, numa altura em que ordenamento jurídico já disse, preto no branco, que o condenado praticou o delito de VD. Ora, nos termos do art. 9.º, n.º 3 do Código Civil – norma aplicável a todos os ramos de Direito –, os juízes devem partir do princípio que o legislador se pronunciou nos termos mais exactos e consagrou as soluções mais acertadas. Donde, apenas a hermenêutica que vimos de patrocinar o consegue, sempre respeitando a regra de que tal resultado deve ter na letra da lei uma réstia de sentido que o permita – tem-no pelo facto de se poder recorrer ao “lugar paralelo” do que sucede quando se aplica a proibição de contactos com VE em sede anterior à condenação.
Como o mundo do Direito e das suas interpretações é, por definição, de zonas cinzentas, mesmo que, segundo creio, o resultado a que chegam acórdãos como o citado não consagrem a melhor, em matéria de tão graves resultados práticos para a vida das vítimas não pode restar espaço para dúvidas. Daí a urgência da alteração legislativa, por esta poder bem ser a diferença entre a vida e a morte para as mulheres (são elas, estatisticamente, as principais vítimas) que vivem verdadeiros infernos na terra. É mesmo cogitável uma eventual inconstitucionalidade por omissão neste concreto aspecto da nossa legislação, em face da letra e do espírito da Convenção de Istambul, de que fomos um dos primeiros Estados ratificantes, e que visa eliminar todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres.