Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla usou donativos para pagar salários
Donativos no valor de 35 mil euros foram usados para pagar salários, no final do ano passado. A direcção da IPSS justifica a transferência com problemas de tesouraria, ocorridos depois do caso “Raríssimas”.
Para fazer face às dividas da instituição, a nova direcção da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) levantou, no final do ano, cerca de metade do valor das poupanças da delegação do Algarve – 35 mil euros. Agora, estoirou a polémica sobre a gestão de donativos e dinheiro público nesta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS).
A coordenadora regional Maria de Jesus Bispo, que foi exonerada entretanto, dirigiu uma “carta aberta” aos amigos e colaboradores da instituição, acusando a actual direcção de “delapidação” dos fundos arrecadados ao longo de 15 anos. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) comparticipa na totalidade os tratamentos dos pacientes que sofrem desta doença crónica.
Maria de Jesus Bispo justifica a denúncia pública, em forma de “carta aberta”, com a necessidade de prestar contas. “Tenho o dever de informar as pessoas que acreditaram em mim, e me ajudaram a arranjar o dinheiro, promovendo várias iniciativas, com o objectivo de ajudar os doentes, dando-lhes melhores condições de vida e de tratamento."
A conta bancária somava 66.800 euros. Sobre o resto do dinheiro (31.800 euros), acrescenta, foi dada ordem de transferência para uma outra conta da direcção da instituição, mas o Banco Santander “pediu um parecer jurídico, para saber da legalidade/legitimidade daquela operação", não tendo sido feito o movimento solicitado num primeiro momento.
Posteriormente, ao que o PÚBLICO apurou, os novos dirigentes demonstraram que tinham legitimidade para movimentar a conta, já que tinham sido eleitos, e a transferência foi mesmo feita.
O presidente da SPEM, Alexandre Guedes da Silva, visado nas acusações, justifica assim o uso dos 35 mil euros: “Foi necessário, no final do ano, usar as reservas que a SPEM tinha para pagar salários. Portanto, trata-se de uma operação normalíssima, não há aqui nada de estranho, está tudo previsto nos estatutos."
O ano de 2018, sublinhou, “foi muito difícil para todas as IPSS”, recorda, por causa da divulgação das suspeitas de irregularidades na gestão da Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras. “Infelizmente, as IPSS dependem muito de donativos e da vontade das pessoas de ajudarem”, enfatizou.
Alexandre Guedes da Silva foi eleito presidente da SPEM no dia 15 de Dezembro de 2018, em lista única, com 59 votos – 3,5% do total dos 1688 associados da SPEM. Na direcção anterior ocupava o cargo de vogal e de director com o pelouro das Relações Internacionais.
Uma das primeiras medidas que tomou, cinco dias depois de tomar posse, foi fazer um despacho de exoneração dos coordenadores das 16 delegações e núcleos da instituição, até à conclusão de eleições regionais ou de nomeações. Maria de Jesus Bispo foi afastada, e em seu lugar foi nomeado um novo coordenador. O acto eleitoral a nível regional está previsto ocorrer no final de Março, princípios do mês de Abril. Quem fez a operação bancária, declarou ao PÚBLICO o presidente da SPEM, “foram as pessoas que legitimamente poderiam fazer a operação – não há delapidação de coisíssima nenhuma”.
A única “ilegalidade”, enfatiza, “era haver pessoas não autorizadas a mexer na conta, entre elas, essa senhora [Maria de Jesus Bispo]. Essa foi uma situação que a anterior direcção não conseguiu reverter". De acordo com estatutos da SPEM (artigos 36.º, 37.º e 38.º), as delegações são dirigidas por um coordenador e mais três elementos.
Em nota de imprensa, assinada pelo pelouro financeiro, a direcção da SPEM adianta que “os montantes movimentados das suas reserva financeiras [angariados no Algarve] serão repostos na íntegra durante este mandato de acordo com a maior taxa de esforço possível (mais rapidez)”, acrescido do pagamentos de juros, com um taxa mínima não inferior à inflação.
5500 doentes em tratamento
Não existem estatísticas sobre o número de pessoas atingidas pela esclerose múltipla, que pertence ao grupo das doenças auto-imunes. A nível nacional há cerca de 5500 doentes em tratamento, diz Isabel Valente, neurologista no Hospital de Faro. No Algarve, serão cerca de 500 as pessoas que sofrem da doença.
No Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), os doentes em tratamento têm um custo médio de 500 euros/mês, embora haja pacientes, destaca, que representam um encargo para o CHUA de cinco mil euros mensais.
O que faz esta IPSS é dar apoio psicológico e social aos doentes e familiares, na aquisição de cadeiras de rodas, nas deslocações à fisioterapia e outros serviços. A delegação de Faro possui ainda uma carrinha de oito lugares que lhe foi oferecida. O fundo financeiro, diz Maria de Jesus Bispo, destinava-se a apoiar os doentes e construir novas instalações e um centro de tratamento.
A Câmara Municipal de Faro cedeu o terreno a custo zero para o edifício, mas entretanto o lote já foi devolvido à autarquia, por falta de concretização do projecto, que custou 11 mil euros à delegação regional da SPEM.
Isabel Valente trabalha nesta área há mais de duas décadas, e faz voluntariado na região para ajudar a ultrapassar alguns bloqueios, relacionados com a integração social: “Um número significativo de pacientes refugia-se no anonimato, por causa do estigma social”, destaca. Sobre os sintomas da doença, observa, “um dos primeiros sinais é a falta de força numa perna ou num braço, ou começar a ver duas imagens”. A partir dessa altura, acrescenta, a qualidade de vida começa a deteriorar-se. Porém, a evolução da ciência “já permite obter bons resultados terapêuticos”.
Nuno Coelho, de 54 anos, antigo quadro do Millennium/BCP, desloca-se numa cadeira de rodas. Quando tinha perto de 20 anos foi-lhe diagnosticada esclerose múltipla: “Senti uma perna a arrastar”, recorda. Quando se reformou, por invalidez, já tinha 30 anos de trabalho, o que lhe permitiu a sustentabilidade financeira. “Não é o que acontece à maioria das pessoas, que são agarradas pela doença no início das carreiras profissionais”, comenta Isabel Valente. “Agora sou voluntário profissional”, diz Nuno Coelho, o novo coordenador da SPEM em Faro, nomeado pela direcção nacional, que levantou um processo disciplinar a Maria de Jesus Bispo com vista ao seu afastamento de sócia. Sobre o trabalho da antecessora, diz: “Dedicou a vida por esta causa." No que diz respeito ao sonho de construção de uma sede, essa é uma questão que está fora de questão: “Vamos privilegiar o apoio aos doentes, não a construção de edifícios.”