Calçado português? Bom no fabrico, desconhecido na marca
O nome de um país pode (des)valorizar o preço dos sapatos. A Católica esteve em Milão a estudar o tema. O PÚBLICO ouviu produtores estrangeiros.
Podemos aprender muito sobre nós através dos olhos dos outros. E quando nos avaliamos com base no que os outros vêem, pode haver surpresas. Se esta ideia é verdade para as pessoas, ela também se pode aplicar a empresas. Foi o que aconteceu na recente edição da maior feira de calçado do mundo, a MICAM (Milão). Portugal tinha a segunda maior embaixada estrangeira em Itália, logo após a Espanha, e a associação que representa o calçado português, a APICCAPS, colocou à entrada do recinto um cartaz com a imagem de um bailarino, que foi vetado pela organização.
A imagem faz parte da última campanha de promoção do calçado português, que recorreu a membros da Companhia Nacional de Bailado em vez de modelos, habituais na indústria mundial. A ideia da APICCAPS era fazer uma campanha diferente, que transmitisse a mensagem de que o calçado pode ascender ao estatuto de objecto de arte, com a plasticidade e o movimento dos bailarinos a conjugarem a ideia de uma indústria em mudança.
Porém, onde os portugueses viam um bailarino em calções e sapatos desportivos, os italianos viram um “Cristo sexy”, algo inadequado para a entrada de uma feira multinacional, multicultural. Vai daí, a feira exigiu a retirada do cartaz, que teve de ser substituído horas antes da abertura. Já vimos este filme em qualquer lado e, lá está, é tudo uma questão de percepção. O que é artístico para uns será escandaloso para outros.
Se passarmos das campanhas para os produtos, a lógica é a mesma. E no calçado, estudos feitos no passado recente provam que o país de origem do sapato é um factor que interfere na percepção de consumidores e produtores. Mediante “provas cegas”, mostrou-se que o calçado português suscita uma disponibilidade para pagar mais do que o calçado italiano, que é visto como líder mundial, mas depois de revelada a origem geográfica do sapato, essa disponibilidade baixa no caso português e sobe no caso italiano.
Foi com isso em mente que uma equipa da Universidade Católica do Porto se deslocou a Milão, para um novo estudo sobre o valor da marca Portugal no calçado. E foi com base nesta ideia sobre as percepções que o PÚBLICO abordou empresários de outros países presentes na feira, para saber como se vêem a eles mesmos e como vêem Portugal e a indústria nacional. A conclusão, a partir desta pequena amostra, pode não ser a mais animadora para um sector que, por cá, tem investido muito tempo e (algum) dinheiro na criação de marcas desde que apostou na modernização.
Itália, a promover-se “desde o Renascimento"
O que dá força ao sapato italiano, líder mundial? É o design? A moda vanguardista? É a qualidade da produção? Gianmaria Vacirca, gestor de marketing da Fabi Barracuda, fundada em 1965, diz que é isso tudo, mas realça outra explicação: “O que faz a diferença é a tradição.”
“Esta capacidade de continuar a criar respeitando os materiais e uma herança que inclui uma cultura valiosa, uma história grandiosa, com grandes nomes das artes, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Raffaello... Talvez seja isto o que faz a diferença”, argumenta este profissional do marketing de uma empresa que se apresentou em Milão com duas marcas próprias e oito linhas de calçado, num dos dois pavilhões que a MICAM reservou para o segmento de luxo.
Na mesma linha de raciocínio vai o director de comunicação da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS), que representa todo o sector português. “A Itália anda a promover-se desde o Renascimento!”, exclama Paulo Gonçalves, sublinhando que esse passado confere hoje uma vantagem competitiva ao calçado italiano, porque mexe com a percepção que o mundo tem do país.
Estamos portanto no domínio do intangível, mas é ponto assente, há muito, que existe um “efeito país de origem” e que o nome do país pode valorizar ou desvalorizar o produto. O que a Católica fez com o estudo de 2015, e que repetiu este ano, foi abordar mais de 300 empresários, retalhistas, agentes e grossistas com um inquérito e, parte dessa amostra, com uma “prova cega” que permitiram quantificar o peso desse efeito no preço do calçado nacional.
Portugal, um nome que ainda tira valor
A conclusão nessa altura foi que tanto o calçado masculino como o feminino made in Portugal tinha melhor avaliação (média de 34 e 31,50 euros, respectivamente) do que o italiano (31,50 euros e 29,60 euros) quando a origem do produto não era revelada. Só que, depois de dar a conhecer a origem, o sapato português desvalorizava (-18,2%, para 27,80 euros, no masculino; e -18,4%, para 25,70 euros, no feminino), ao passo que o calçado italiano valorizava ligeiramente (+1,6% no masculino) ou mantinha o preço inalterado (no calçado feminino), ainda assim 13,6% acima do preço do calçado português.
Ainda assim, a avaliação de 2015 trazia boas notícias. Comparando aqueles dados com os resultados de um primeiro estudo do género, feito pela APICCAPS, alguns anos antes, o “efeito país de origem” era menos prejudicial, já que, nesse primeiro estudo, o valor do calçado português descia cerca de 30% quando era revelada a origem. “Em poucos anos, o made in Portugal valorizou-se”, anota Paulo Gonçalves. “Fizemos quase metade do caminho. É preciso continuar”, insiste.
A reedição deste estudo nesta MICAM irá dizer se esta tendência se manteve e a que ritmo. Os resultados só deverão chegar daqui a alguns meses, diz a APICCAPS. Mas não é preciso esperar por eles para confirmar que o sapato italiano continua no topo. “É um produto muito bem trabalhado e, por outro lado, em Itália têm um marketing muito forte, que nós não temos, um sentido de moda muito apurado, são vanguardistas, ousados”, argumenta por seu lado Rosário Peis, da gestora de ecommerce na empresa Pedro Miralles, fundada em 1959, em Elche (Alicante), que é um dos clusters do calçado em Espanha.
Espanha, um concorrente que “redobra esforços"
Espanha tem a seu favor “um preço competitivo para produtos de qualidade, com bons materiais. “Não somos tão vanguardistas como os italianos em termos de tendências de moda, precisamos de mais marketing e mais moda”, avalia. “Mesmo assim, o made in Spain é uma referência”, defende. “As pessoas que perguntam pela etiqueta valorizam a origem espanhola porque sabem que podem contar com bons acabamentos, um produto de qualidade”.
E como vê a concorrência portuguesa? “O made in Portugal está a ter uma adesão muito forte. Parece haver uma união de esforços para tentar dar mais força a esta marca”, diz Rosário. Porém, “Portugal continua a ser visto como fornecedor”. “Precisam de dar um passo em frente, como sucedeu em Itália, apostar mais no desenvolvimento de produtos, no design, nas marcas, porque visto de fora, Portugal é um bom fabricante e à concorrência interessa que essa imagem de fornecedor competitivo no preço se mantenha”. E conhece marcas portuguesas? Rosário diz que sim, mas não consegue nomear uma.
Esta foi, aliás, uma constante na MICAM. Só um dos diversos entrevistados pelo PÚBLICO conseguiu nomear uma marca portuguesa. Foi Carlos Chico de Guzmán, um dos dois sócios e director-geral da Hispanitas, de Alicante. As raízes desta empresa familiar remontam ao negócio criado pelo avô dos actuais gerentes, Alfonso Chico de Guzmán, que começou a fazer sapatos antes da guerra civil espanhola. Chamou à empresa Alfama. Agora, sob outra insígnia, a família tem alguma da produção actual em Portugal, porque “há bons produtores”. “Também há algumas marcas boas, mas não conheço muitas”, acrescenta.
Sobre a competição global, este gestor vê Itália “muito forte na tradição e no design”, mas acredita que Espanha está a recuperar terreno. “Os italianos sempre se venderam melhor. Por isso estamos a redobrar os nossos esforços nesse plano, porque em preço somos mais competitivos do que a Itália. A questão é que é muito difícil porque os italianos têm, há muito, uma grande fatia do mercado mundial.”
Salinaz Baylav, responsável da Blacklory, uma marca alemã produzida na Turquia - um país que tem conquistado mercado na produção a feitio (o chamado private label), não vê assim tantas diferenças entre produtores latinos. “A única diferença da Itália é o passado. A qualidade na Turquia, em Portugal ou Espanha está hoje ao mesmo nível. Há 20 anos não era assim, mas agora não vejo diferenças, para lá do design. Os italianos desenham tudo, marcam a tendência e o resto do mundo segue-os”, sustenta esta empresária, que não conhece marcas portuguesas e cujos principais clientes no private label são a Rússia e a Roménia.
"Fazer justiça” à Península Ibérica
Alessandro Baldin, responsável comercial da De Marchi, é um italiano que representa outra empresa turca presente na MICAM. Também ele destaca a tradição como a principal vantagem competitiva da Itália. “São os representantes de uma linhagem de artesãos, mas não pararam no tempo. Estão sempre dois passos à frente quando pensam no produto seguinte, na tendência seguinte”, considera.
Voltamos a Gianmaria Vacirca, da Fabi Barracuda, que diz que “é preciso fazer justiça a Portugal e Espanha”. “Itália é mais fashion, mas temos de ser honestos, na Península Ibérica fazem-se sapatos muito bons.”
Vacirca aponta um caminho para os produtores que não podem valer-se dessa tradição. “No calçado, o futuro vai jogar-se e pode decidir-se no confronto entre quem tem história, no sentido de passado, e história no sentido de uma boa narrativa. Hoje, empresas novas, sem passado, batem o pé a empresas como a minha, com décadas de vida e tradição, porque têm uma boa narrativa”, assinala, dando como exemplo “os putos californianos que fundaram a Allbirds”, que vendem milhões de pares todos os anos, apenas online, com base num produto que outros agora tentam imitar.
A teoria do efeito do país de origem estipula que “as percepções dos consumidores não são sempre tradução da realidade”, como lembrava a equipa do centro de estudos de gestão e economia aplicada da Católica, que fez a análise de 2015. Por outro lado, há um critério que tem um efeito ainda mais forte do que o país de origem, e esse é a marca.
Só que, a avaliar por esta amostra, há ainda muito a fazer nessa matéria. Pedro Caria, fundador da Shaping Brands e consultor externo do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal, é especialista na criação de marcas há dez anos. Ajudou a criar uma mão cheia delas no país e diz que não se pode pedir milagres, porque “Portugal nunca foi um país de marcas”.
“Há dez anos havia poucas, havia uma Fly London, que tinha notoriedade mas muitas vezes nem sequer era associada a Portugal, havia a NoBrand, a Harlot, duas que já não existem como a Eject e a GoldMud, e pouco mais. Ora, não se constrói uma marca numa década, é preciso duas ou três”, refere.
Nos últimos anos, nasceram em Portugal duas marcas novas todos os meses, mas para se ganhar escala e notoriedade é preciso investir muito no início e continuar a investir todos os anos, dinheiro e atenção, anota. E é aí que as coisas podem falhar. “Uma marca não pode ser vista, como muitas vezes acontece, como marca de fábrica, que não são tratadas com a devida atenção. É preciso estar focado nela em permanência, têm de estar numa constante reinvenção.”