Admirável Língua Nova (Parte X)
O Acordo e a sua aplicação encarregaram-se de aniquilar os seus apregoados objectivos. A impossível unificação traduziu-se no acentuar das diferenças ortográficas entre o português de Portugal e o português do Brasil.
— Vais comprar um carro novo?
— Vou. O meu carro para sempre.
Guarde bem a ideia do diálogo.
Leia agora:
— Vais comprar um carro novo?
— Vou. O meu carro pára sempre.
Neste jornal, Francisco Miguel Valada, em 1 de Dezembro de 2018, apresentou dois exemplos que falam por si. Vejamos. “Bloqueio nos fundos da UE pára projecto de milhões na área do regadio” (um título deste jornal) — é evidente que “Bloqueio nos fundos da UE para projecto de milhões na área do regadio” será lido de outra forma. Tão evidente, que os jornais, as revistas, os canais televisivos que adoptaram o Acordo continuam a pôr abundantemente o acento no “pára” quando querem desmanchar a ambiguidade ou até a leitura errónea. Faz lembrar Ricardo Araújo Pereira: “Pode-se fazer, mas é proibido.” O outro exemplo vem de Saramago (Cadernos de Lanzarote II): “Ninguém pára para o socorrer.” Com o Acordo, ficará a parecer gralha ou gaguez: “Ninguém para para o socorrer.”
E já que falamos do Nobel da Literatura e do Acordo, mergulhemos em Bob Dylan traduzido (Canções — Volume I).
(Deixemos de lado o merecimento ou desmerecimento do Nobel, quando a poesia tem uma percentagem escassíssima na lista dos galardoados. Dylan será certamente um poeta maior do que Cummings, Herberto Helder, Auden. E terá até dado um contributo à literatura que, por exemplo, Tolstói, Joyce, Borges, Proust, Fitzgerald, Nabokov, Conrad, Virginia Woolf, Lawrence Durrell não deram.)
Oh, a Primeira Guerra Mundial, rapazes
Desperdiçou a sua sorte
A razão para a luta
[…][1]
Imagine que era uma edição acordizada. Imagine que no original estava “A razão pára a luta”. Ficaria igual à fiel tradução do que Dylan realmente escreveu: The reason for fighting.
Alguém consegue explicar porque desaparece obrigatoriamente o acento de “pára”, enquanto se preservam os acentos de “pôr” e “pôde” e se decreta — pasme-se — a facultatividade do acento de “dêmos”? Ninguém.
Camilo Castelo Branco, em O Santo da Montanha: “Já que morreu a serpente, demos duas cabriolas; que, medrosos de seus olhos, nada até ora fizemos.”
Sem tirar o acento e como Camilo escreveu: “Já que morreu a serpente, dêmos duas cabriolas; que, medrosos de seus olhos, nada até ora fizemos.”
Alguém consegue explicar a vantagem da facultatividade do acento em “dêmos”?, em “lavámos”, “jogámos”, “ganhámos”, “trocámos”? Ninguém.
Que ornamento ortográfico é este que só serve para confundir o tempo pretérito com o tempo presente e até futuro? “Não ganhamos” poderá ser, com o Acordo, “não ganhamos” (no presente), “não ganhamos” (opinião sobre algo que se realizará futuramente, passe a redundância) ou… “não ganhámos” (no passado).
Que ganha a Língua Portuguesa com isto?
Que ganha a Língua Portuguesa por “descaracterizámos” (no pretérito perfeito) passar a dispor de um cardápio de quatro ortografias: “descaracterizámos”, “descaraterizámos”, “descaracterizamos” e “descaraterizamos”?
Alguém consegue explicar a razão que presidiu a estas decisões? Ninguém.
Não tendo sido aprovado o Acordo de 1986 (que pretendia abolir os acentos das palavras graves e esdrúxulas), o Novo Acordo — o de 1990… porque será que, em 2019, ainda se fala tanto do dito?, será pelos seus inexcedíveis méritos? — lá condescendeu que se mantivessem acentos nas palavras graves e esdrúxulas: “análise (s.[2])/analise (v.[3]), fábrica (s.)/fabrica (v.), secretária (s.)/secretaria (s. ou v.), vária (s.)/varia (v.), etc., casos que, apesar de dirimíveis pelo contexto sintáctico [eis o Acordo a não seguir o Acordo], levantariam por vezes algumas dúvidas e constituiriam sempre problema para o tratamento informatizado do léxico”.
No caso do “pára”, porém, o acento desaparece, porque “tratando-se de pares cujos elementos pertencem a classes gramaticais diferentes, o contexto permite distinguir claramente tais homógrafas”. Mas esperem lá, os exemplos de “análise/analise”, “fábrica/fabrica”, “secretária/secretaria [que pode ser forma verbal], “vária/varia” não pertencem também a classes gramaticais diferentes?! E o “para” que é “pára” não levanta “por vezes algumas dúvidas”?! Continuando nesta lógica de manicómio: e “pôde”, que é palavra grave e tem uma frequência muito menor na escrita do que “pára”/”para”, porque manteve o acento para não se confundir com “pode”?
Tudo isto serviu para internacionalizar a Língua Portuguesa? Quem é tão tolo que possa acreditar nisso? Tudo isto serviu apenas para a abandalhar.
O Acordo e a sua aplicação encarregaram-se de aniquilar os seus apregoados objectivos. A impossível unificação traduziu-se no acentuar das diferenças ortográficas entre o português de Portugal e o português do Brasil, com a criação de palavras num laboratório exclusivo para o português de Portugal, porque os Brasileiros pronunciam muitas consoantes etimológicas que nós não pronunciamos; na destruição dos vestígios do nosso património cultural e no consequente afastamento ante as línguas que preservaram as raízes etimológicas; numa proliferação diária e omnipresente de erros em falsas “consoantes mudas” (nasceram milhões de “contatos”); num português falado que vai fabricando pronúncias inauditas com o fechamento de vogais (revelou-se que, afinal, era bem mais fácil ensinar que “recepção” se escrevia com p do que ensinar que “receção” se deve ler “recéção” e não “recessão”, como por aí crescentemente se vai dizendo).
Continuemos a exigir dos políticos discussão e acção quanto ao Acordo. Não esqueçamos, porém, a arma essencial: a resistência de cada indivíduo e instituição: não adoPtar o Acordo. É o combate de quem rejeita que a estupidez vingue sobre a inteligência.