Morreu Stanley Donen, o realizador de Serenata à Chuva, o mestre do musical
Co-autor, com Gene Kelly, de um dos mais celebrados filmes do musical norte-americano desapareceu aos 94 anos.
Um Dia em Nova Iorque, Serenata à Chuva, Sete Noivas para Sete Irmãos, Dançando nas Nuvens, Cinderela em Paris. Em cinco filmes, fica resolvida a importância de Stanley Donen, que morreu na passada quinta-feira em Nova Iorque, aos 94 anos de idade, na história do cinema e em particular na história do musical de Hollywood. Antigo bailarino e ajudante de coreógrafo na Broadway no início dos anos 1940, entrou em 1943 pela “porta grande” na MGM, o estúdio que é sinónimo da era de ouro do musical, e reinventou-se na década de 1960 como praticante da alta comédia sofisticada com Charada ou Arabesco.
A notícia da sua morte foi avançada no Twitter por Michael Phillips, crítico de cinema do Chicago Tribune, depois de confirmada por um dos filhos do realizador. “Era um talento enorme, mas muitas vezes negligenciado”, acrescentou Phillips, certamente referindo-se ao facto de nenhum dos seus filmes ter tido a consagração merecida nos Óscares. Mas a Academia de Hollywood compensou-o, de algum modo, atribuindo-lhe uma estatueta honorária em 1998, entregue por Martin Scorsese, e homenageando “uma obra marcada pela graça, pela elegância, pela inteligência e pela inovação visual”.
Era, na prática, o último grande director dos anos de ouro de Hollywood ainda vivo. Mas, por inacreditável que pareça, a sua derradeira longa-metragem, Romance no Rio, data de 1984. Nos últimos 30 anos, Donen realizou apenas um telefilme (Love Letters, em 1999), pontuais episódios televisivos e telediscos, e encenou duas peças teatrais. Enquanto era aclamado como um dos maiores estilistas do cinema musical e honrado com prémios de carreira – como o Leão de Ouro de Veneza, em 2004 – as suas aptidões enquanto cineasta eram liminarmente ignoradas por uma Hollywood onde já não havia lugar para ele desde os anos 1970. Esse desfasamento ficou notório quando recebeu o seu Óscar – e dançou com a estatueta enquanto cantava Cheek to cheek, clássico de Irving Berlin que Fred Astaire, seu herói de infância, popularizara nos anos 1930.
Nascido a 13 de Abril de 1924 em Columbia, na Carolina do Sul, Donen começou por baixo, subiu a pulso e foi um dos grandes inventores do cinema clássico, sem nunca ter sido nomeado para um Óscar. Com Gene Kelly, o bailarino, actor e cantor que conheceu na Broadway em 1940, co-dirigiu três musicais que abriram portas ao género. Inaugurou essa fase com Um Dia em Nova Iorque, em 1949, o primeiro musical rodado em exteriores, nas ruas de Nova Iorque com o qual, de certo modo, foi um precursor da Nouvelle Vague, com o seu trabalho de câmara e de montagem a antecipar a velocidade e a leveza dos primeiros filmes de Godard ou Truffaut (que aliás lhe reconheceram a dívida; Godard chamava-lhe “o mestre do musical”). Depois, em 1952, fez Serenata à Chuva, ambientado na passagem de Hollywood do cinema mudo para o sonoro – um “meta-musical” sobre a ilusão do cinema ainda hoje considerado um dos maiores exemplos do género. Finalmente, em 1955, rodou o mal-amado Dançando nas Nuvens, sátira melancólica e desencantada, requiem por um género que começava a ser ameaçado pela televisão, e ponto final na sua relação de amizade com Kelly. Durante os seis anos que decorreram entre os três filmes, Donen assinou outro clássico do musical, o muscular Sete Noivas para Sete Irmãos (1954), e dirigiu Fred Astaire num dos seus mais lendários números, dançando pelas paredes de um quarto, em Casamento Real (1950) – “truque” que repetiria no teledisco que dirigiu em 1986 para Lionel Richie no tema Dancing on the ceiling.
O cineasta realizaria ainda um outro dos últimos grandes musicais, Cinderela em Paris (1957), com Fred Astaire e Audrey Hepburn – e música de George Gershwin –, inspirado pelo trabalho de Richard Avedon; e com George Abbott, que fora seu encenador na Broadway, co-assinou duas outras adaptações de sucessos da Broadway, Negócio de Pijamas(1957), com Doris Day, e Brincadeiras do Diabo (1958).
Os anos seguintes viram Donen orientar-se para a alta comédia sofisticada. Indiscreto (1958), com Cary Grant e Ingrid Bergman, Charada (1963), com Grant e Audrey Hepburn, Arabesco (1966), com Gregory Peck e Sofia Loren, e Os Sete Desejos (1967), com Dudley Moore, Peter Cook e Raquel Welch, foram os seus maiores sucessos deste período. Mas foi a sua melancólica radiografia de um casal moderno (Audrey Hepburn e Albert Finney, também recentemente desaparecido), Caminho para Dois (1967), que ficou como o seu grande filme desta década.
A década de 1970 foi marcada por dois desastres críticos e comerciais: o seu regresso ao musical com uma adaptação de O Principezinho de Saint-Exupéry (1974) e Uma Mulher dos Diabos (1975), comédia nostálgica de aventuras com Liza Minnelli, Gene Hackman e Burt Reynolds que foi um dos “pregos no caixão” da nova Hollywood e efectivamente “matou” a sua carreira de realizador.
Por cinco vezes casado (e divorciado) e pai de quatro crianças, Donen vivia desde 1999 com a actriz e realizadora Elaine May. E nunca perdeu verdadeiramente o humor, como demonstrou na resposta que uma vez deu numa entrevista sobre o seu trabalho, agora recordada pelo jornal espanhol ABC – “Para mim, realizar é como o sexo: quando é bom, é muito bom, mas quando é mau, continua a ser bom”. com Sérgio C. Andrade