Sérgio Godinho feliz nos coliseus, sob o signo de Nação Valente
Do Capitólio em 2018 aos coliseus agora, Sérgio Godinho completa o circuito nacional de Nação Valente, um dos melhores discos que já gravou. Esteve em grande forma em Lisboa e apresenta-se dia 28 no Porto. Com Camané, Manuela Azevedo e Filipe Raposo por convidados.
Os coliseus são salas familiares a Sérgio Godinho. Não as únicas, há outras (como o São Luiz ou o Rivoli), mas os coliseus dão aos seus concertos uma aura de celebração e triunfo, a que ele corresponde sempre com o máximo empenho, entrega e profissionalismo. Nação Valente, que chegou aos coliseus passado um ano da edição do disco (um disco excelente, dos melhores que já gravou) e após a estreia no Capitólio, em Fevereiro de 2018, seguida de apresentações noutros palcos por todo o país, não fugiu à regra: fez justiça às canções, entusiasmou o público e só se extinguiu ao terceiro encore.
Misturando canções novas e antigas, como ele sempre faz, mas procurando que entre elas haja ligações próximas (temáticas e musicais), Sérgio Godinho abriu o espectáculo com Noite e dia, do novo disco, juntando-lhe depois Etelvina, para começar com a sina dos deserdados da sorte. Grão da mesma mó e Baralho de cartas reafirmaram, se fosse preciso fazê-lo, a intensidade de Nação Valente, seguindo-se o popular e sempre actual Coro das velhas, para regressar ao disco novo, com o bem urdido Artesanato.
Camané, o primeiro dos convidados da noite, começou por cantar a Balada da Rita (“uma canção que ele ama”, disse Sérgio) e depois Mariana Pais, 21 anos, do novo disco, com música de José Mário Branco que, recordou Sérgio, foi o seu primeiro parceiro musical de sempre, ainda no exílio em Paris. Duas figuras femininas fortes, Rita e Mariana Pais, na interpretação de Sérgio e Camané e com Filipe Raposo ao piano, todos eles com ligações a José Mário Branco, por trabalharem ou já terem trabalhado com ele. Mas se Camané é um bom cantor de outras canções, é no fado que se revela por inteiro. Foi o que sucedeu com Emboscadas, que Sérgio compôs como fado e acabou por gravar como canção no disco Na Vida Real (de 1986), oferecendo-o mais tarde a Camané, que o gravou como fado em Do Amor e dos Dias (2010). E foi como fado que o cantou no coliseu, magnificamente, como só ele sabe.
Veio depois Em dias consecutivos, com música de Bernardo Sassetti, que Sérgio ali justamente recordou – ainda com Filipe ao piano, a confirmar o bom gosto e a arte que fazem dele um dos mais disputados pianistas da actualidade em Portugal. E Dancemos no mundo, que Sérgio Godinho dedicou a “todos os refugiados e emigrantes”, para regressar ao disco novo, com um dos seus temas mais emblemáticos: Tipo contrafacção (com dois C, que Sérgio não vai nas cantilenas da contrafacção ortográfica). Benvindo sr. Presidente (com a palavra “selfie” a substituir “fotos”) antecedeu Já joguei ao boxe, já toquei bateria, isto antes de assomar ao palco Manuela Azevedo, dos Clã, a terceira convidada da noite, que Sérgio apresentou como “a minha querida repetente” por partilharem há muito vários palcos juntos. E voltaram a fazê-lo, com Sopro do coração (que Sérgio compôs com Hélder Gonçalves, para os Clã) e Espectáculo, na versão acelerada e “rocker” de Afinidades (concerto que juntou Sérgio e os Clã ao vivo, em 1999, e foi lançado em disco em 2001) mais ainda mais feérica.
Mantendo alta a fasquia, vieram depois duas canções de um projecto anterior, Caríssimas Canções (de 2013): Os vampiros, de José Afonso, numa excelente versão, densa e “negra”, que acentua a força da lírica e também a intencionalidade da canção; e O rapaz da camisola verde, poema de Pedro Homem de Mello musicado por Frei Hermano da Câmara e aqui servido num ritmo leve, aparentado ao ska. Boas lembranças, antes do remate (apropriado) com Até já, até já, a última canção do disco Nação Valente (cujo tema-título, curiosamente, não se ouviu neste espectáculo) e, fazendo uma ponte com o sentimento presente no concerto e memórias de noites passadas, Com um brilhozinho nos olhos.
Entrou-se, então, no período dos encores, com três regressos ao palco, por entre muitos aplausos, e um total de cinco canções. Primeiro Esta Lisboa que amanhece (dia 28 no concerto do Coliseu do Porto será certamente outra, talvez O Porto aqui tão perto) e depois Liberdade, com o público de pé e todos em palco: Sérgio, a banda que o acompanha (Os Assessores, como ele os designa) e os três convidados. Liberdade, recorde-se, além de ser uma canção emblemática do primeiro disco que Sérgio gravou logo após a queda da ditadura, em 1974 (À Queima Roupa), foi também título de um espectáculo que criou para celebrar os 40 anos do 25 de Abril e que, gravado ao vivo, deu um disco (em 2014). Pois as letras que compunham o cenário desse espectáculo foram, agora, dispersas pelo palco, como se a liberdade estivesse a ser estilhaçada (só as letras A, D e E se mantiveram, juntas, no alto), o que de algum modo retrata os instáveis e perigosos tempos que hoje vivemos, em tantos cantos do mundo.
Nos dois encores seguintes, ouviu-se primeiro O homem-fantasma (de Pano-cru, de 1978, álbum que, juntamente com Campolide, de 1979, se espera venha a ser reeditado em CD, colmatando uma grave lacuna na sua discografia hoje disponível) e depois duas canções já há muito entranhadas na memória e a que ele frequentemente volta, até por insistência do público: O primeiro dia e A noite passada. E Sérgio cantou as últimas palavras desta canção como se retratassem a empatia daquela noite: “E então tu olhaste/ Depois sorriste/ Disseste ‘ainda bem que voltaste’.” É verdade: ainda bem que ele voltou aos coliseus e ao público que neles efusivamente o recebe. Segue-se o Porto, dia 28, nesta Nação Valente.