A oportunidade para o Museu que “vem” da Ásia

Os museus não são só espaços de imperialismo (é verdade que o foram em tempos e, em alguns casos, ainda o continuam a ser), também podem ser espaços de resistência e sobretudo de consensos.

O fascínio por “colecionar” o Oriente

O fascínio pelo Oriente não é coisa de agora; em finais do século XIX era frequente encontramos nas casas europeias, móveis, objetos de uso diário, ou decorativos provenientes do Oriente. A China era sem dúvida o país que suscitava mais interesse – como se pode ver no Mandarim de Eça de Queirós – era de lá que provinha a maior parte dos objetos e era com base nesses e nas suas características que se originavam a maioria das falsificações. Na atualidade, os objetos provenientes da Ásia, por certo, também estão presentes nas nossas casas, provavelmente agora com uma ligeira inversão: antigamente abundavam sobretudo nas casas mais abastadas, na contemporaneidade, distribuem-se pelos lares mais modestos. O gosto pela Ásia tem-se mantido historicamente no nosso país, podendo ser explicado, numa primeira fase, pelas reminiscências da antiga presença portuguesa no Oriente e, atualmente, pelas circunstâncias políticas de aproximação à Índia e à China, numa tentativa de diálogo com o passado que agora se pretende efetivar através dos museus.

Ao contrário do que tem acontecido com coleções de origem africana ou americana que, geralmente, remetem para assuntos incómodos da colonização e também para o modo como os objetos foram adquiridos, no caso asiático, essas questões parecem ser menos controversas. Por um lado, porque a maioria dos historiadores de arte tende a associá-las a heranças familiares quinhentistas ou precisamente a aquisições realizadas pelas famílias abastadas de Lisboa e do Porto em finais do século XIX; por outro, porque se tratam geralmente de peças que parecem estar relacionadas com as artes decorativas e com sincretismos religiosos. Estas últimas características dão uma certa impressão visual positiva, um carácter artístico que aparenta estar imune à disputa e ao conflito, contudo, esta visão e orientação pouco diz sobre a relação de Portugal com o Oriente, ficamos apenas a conhecer o gosto, uma moda de um determinado grupo.

O Museu do Oriente representou um primeiro passo para uma mais ampla compreensão das culturas que os portugueses foram encontrando na Ásia a partir do século XVI e que estavam, até então, nos museus, praticamente confinadas às artes decorativas. A coleção asiática de Francisco Capelo pode, agora, almejar a ir ainda mais longe, caso mantenha a consciência do debate contemporâneo sobre as coleções não europeias e as suas possíveis implicações nos museus: debate esse muito bem sintetizado neste jornal por Ângela Barreto Xavier e António Pinto Ribeiro.

A cultura da franja

A 17 de Fevereiro, numa entrevista ao Observador, John Darwin, Professor de História Global e Imperial da Universidade de Oxford, afirmava que “os europeus na Ásia são confrontados com poderosos impérios e, consequentemente, mantiveram-se largamente na franja marítima”. Darwin concluía igualmente, seguindo Kenneth Pomeranz, que só o carvão e o consequente uso na maquinaria a vapor permitiram à Europa ultrapassar o Oriente: estando as forças praticamente equilibradas até ao século XIX. Mas essa visão de igualdade transparece nas histórias e narrativas que vemos nos nossos museus? Terá sido a nossa presença na Ásia diferente? Darwin é perentório ao afirmar que a presença portuguesa do ponto de vista da “ocupação do espaço” não foi muito diferente da dos ingleses, holandeses e franceses: estavam confinados às franjas marítimas do continente. Sanjay Subrahmanyam defendeu inclusivamente, há pouco mais de um ano, no Expresso, que o império português na Ásia era um “império em rede”, baseado em entrepostos de pequena a média dimensão que se estendia da costa de Moçambique às praias de Timor. Mesmo Goa – ainda assim um pequeno enclave no contexto indiano – só adquiriu mais de metade do território com as novas conquistas em finais do século XVIII, e sua ocupação e relação entre portugueses e locais, hoje em dia, apresentada muitas vezes como um “exemplo”, está longe de se aproximar da realidade que foram os séculos XVI e XVII, veja-se por exemplo: A Invenção de Goa, Poder Imperial e Conversões Culturais nos séculos XVI e XVII de Ângela Barreto Xavier.

A relação boa ou má, impositiva ou assimilada entre os portugueses e os vários povos asiáticos, simplesmente não está ainda retratada nos museus portugueses, é pontualmente aflorada, em exposições temporárias como, por exemplo, na exposição: Uma História de Assombro. Portugal-Japão nos séculos XVI-XX; não tem um carácter permanente, a generalidade dos museus com coleções asiáticas não o consegue mostrar, mostra apenas uma suposta superioridade pueril através do gosto e colecionismo das famílias abastadas de finais do século XIX e princípios do século XX.

As palavras importam...

Há poucos dias, uma colega teve a amabilidade de me enviar um livrinho, uma espécie de guia assinado por alguns dos principais museus holandeses com coleções etnográficas ou com referências ao período colonial (Tropen Museum; Afrika Museum; Museum Volkenkunde e Wereld Museum). O título é muito sugestivo: Words Matter (as palavras importam). Esta obra tem como finalidade ser um guia – inacabado – para as escolhas das palavras a usar no sector cultural, não é de todo impositivo e mantém o estatuto de “work in progress”. Para Wayne Modest, um dos autores, especialista em cultura material, “mudar as palavras não significa mudar a história (...) tomar atenção à linguagem usada significa reconhecer que a linguagem que usamos pode afectar o sentido de pertença de outros grupos à sociedade. Trata-se então duma disputa pela representação, reconhecimento e respeito”.

A meu ver, esta perspetiva, de passos e ações sinceras em museus – alterando legendas, títulos e reformulando a narrativa sobre certos objetos – é muito mais conciliadora e plausível que aquela que, por exemplo, é defendida por Nicholas Mirzoeff em Empty the museum, decolonize the curriculum, open theory (2017) de “esvaziar” estes museus e de impedir que existam. Os museus não são só espaços de imperialismo (é verdade que o foram em tempos e, em alguns casos, ainda o continuam a ser), também podem ser espaços de resistência e sobretudo de consensos. Não é por acaso que, por todo o continente americano, as comunidades de povos originários escolhem os museus para mostrar agora a sua própria visão cultural... existem tantos exemplos do Canadá ao Chile... O Museu, creio, não é ainda um projeto esgotado. Enquanto espaço público, acedido por pessoas de todos os pontos do mundo, deve refletir sobre o seu discurso. Este último, não deve ser um fator de exclusão mais sim de inclusão. Por vezes basta mudar uma palavra numa legenda para alterar todo o contexto que se tem de uma obra e é, também por isso, que as palavras realmente importam para os museus.

O critério antropológico…

Em finais de Setembro, reencontrei-me em Torres Vedras com Salvador Rovira, entre as várias conversas que tivemos sobre a Universidade Autónoma de Madrid – espaço que partilhámos entre 2005 e 2010 –, perguntei-lhe como tinha sido fazer parte da equipa curatorial que viria a reabrir o Museo de América, em 1994, após ter estado mais de uma década encerrado e considerando toda a “carga” simbólica e histórica que a coleção representava para a Espanha. Salvador mostrou-se informado e disse-me que grande parte da discussão que a sociedade portuguesa hoje experimenta sobre o museu das Descobertas, também ocorreu em Espanha, mas nos anos 90. Na altura, segundo Rovira, teve-se a noção que não podiam enveredar por uma expografia centrada em critérios artísticos ou históricos da visão do outro, o critério foi, acima de tudo, antropológico e pretendeu “dar vida” aos objetos, evitando exibi-los como despojos de conquista ou troféus.

Não é ainda conhecido o critério e o modelo de exposição a ser seguido pelos museógrafos da coleção asiática de Francisco Capelo, no entanto, existe aqui uma oportunidade para fazer algo diferente, tendo em conta a ligação deste novo museu a uma instituição como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com tanta experiência e pioneirismo no que diz respeito às questões sociais e comunitárias da sociedade portuguesa. Poderia assim dar-se uma possibilidade de coincidir a criação de um novo museu com uma nova visão museográfica do passado imperial português; capaz de exibir a relação de Portugal com um conjunto de países com os quais teve contactos ao longo de vários séculos, mostrando os encontros e desencontros que ocorreram na heterogénea rede de entrepostos asiáticos onde circulavam pessoas, navios e objetos variados. Enfim, não quero ser utópico mas acredito que é possível criar uma nova narrativa que não separe o nós dos outros, como recentemente foi conseguido na exposição do Padrão dos Descobrimentos: Contar Áfricas!. Seguindo a linha de pensamento do seu curador – António Camões Gouveia – no roteiro da exposição, é importante mostrar a diversidade, “não a visão que de África tiveram os portugueses”. É possível fazer o mesmo com a Ásia? É possível fazê-lo e mantê-lo numa exposição de longa duração? Acredito que sim, é preciso ouvir as comunidades, ver outras experiências e, também, ler os especialistas...

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar