Europa, uma ideia difícil
Quando, perante a aproximação das eleições europeias, chamamos a atenção para o risco de crescimento da extrema-direita, devemos ter em atenção, para sermos sérios, que o risco é mais vasto do que isso e consiste na possibilidade do enfraquecimento de um núcleo democrático-liberal imprescindível para o sucesso do modelo civilizacional.
1. Raymond Aron, grande espírito liberal, dotado de uma lucidez quase exasperante, escreveu em 1951, na sua obra As Guerras em Cadeia, que “a ideia europeia é uma ideia vazia, não possui nem a transcendência das ideologias messiânicas nem a imanência de uma pátria carnal”. Na perspectiva aroniana estaríamos diante de um vazio passional, incapaz de gerar emoções conducentes a uma identificação popular com tal ideia. Tinha toda a razão. O que à época sobressaía era a adesão acrítica à utopia comunista na sua versão marxista-leninista, por um lado, e a memória da exaltação retórica da ideia nacional, por outro. A Europa, entendida aqui no sentido restrito do projecto institucional de que a presente União Europeia é o resultado histórico, começou por ser uma ideia gerada entre as elites, elas próprias desavindas. O vazio a que Aron se refere é ao mesmo tempo a força e a fraqueza do projecto europeu. A sua aparente fraqueza radica precisamente na dificuldade em estabelecer uma identidade política europeia escorada numa adesão sentimental profunda por parte dos vários povos. Num certo sentido falta uma dimensão mitológica a um projecto desde sempre caracterizado por um grande apelo à razão. Será mesmo aquele que mais autenticamente exprime a perspectiva weberiana de um mundo desencantado: o da modernidade democrática ocidental.
A sua força reside no que esse desencantamento contém de abertura para um jogo de confrontações e compromissos democráticos alheio a fanatismos quase sempre de cunho irracional. O vazio que Aron detectou no projecto europeu tem que ver com a sua natureza de artefacto fundado numa vontade racional alheia a qualquer inspiração milenarista e, como tal, pouco vocacionado para concorrer com a retórica política daquilo que hoje convencionamos designar por discursos populistas. Só que aí reside, justamente, uma das suas principais virtudes, que consiste na sua recusa de tudo o que negue a razão crítica, diminua a importância do pluralismo político e desdenhe o valor da liberdade individual.
Não é por acaso que a União Europeia se tornou o alvo favorito dos defensores do chamado modelo democrático iliberal. Esse modelo, que hoje é sobretudo reclamado por sectores políticos situados à direita, dispõe também de um amplo legado histórico fornecido por correntes de opinião identificadas com uma certa esquerda. O que é, aliás, o comunismo contemporâneo senão uma aspiração anti-liberal de fundo democrático?
É verdade que à direita a ambição democrática se esgota num particularismo étnico e que à esquerda ela propende a adquirir uma dimensão universalista. São, por isso, dois fenómenos diferentes, ainda que ambos com resultados históricos catastróficos. Quando, hoje em dia, perante a aproximação das eleições europeias, chamamos a atenção para o risco de crescimento da extrema-direita, devemos ter em atenção, para sermos sérios, que o risco é mais vasto do que isso e consiste na possibilidade do enfraquecimento de um núcleo democrático-liberal que é imprescindível para o sucesso do modelo civilizacional que identificamos com a noção de sociedades abertas, pluralistas e tolerantes.
Ainda há dias ouvi um político da nossa praça afirmar, com denodada destreza, que a moderação é uma forma de tibieza. Não tendo a certeza de que tal figura política tivesse plena consciência do verdadeiro significado do que estava a afirmar, não deixei, contudo, de reparar na aparente convicção com que o fazia. O que me impressiona nestes casos é a forma como o dislate se transmuta em lugar-comum e como o lugar-comum é proclamado como pretensa verdade amplamente partilhada. Numa época em que os espíritos mais fracos tendem a ceder aos cantos de sereia dos extremistas não deixa de ser curioso que haja quem ainda se atreva a fazer processos de intenção sumários aos democratas que sabem que a moderação é tão-só a expressão do culto devido à dúvida, ao respeito pela opinião alheia e à valorização do debate democrático.
Para esse tipo de gente o tal vazio que Aron refere será sempre visto como uma condenação do projecto europeu. É por isso que é perigoso entregar a defesa da Europa a quem tem muito pouco a ver com ela.
2. Temo, como já aqui referi na semana passada, que venhamos a assistir a um debate relativamente pobre no período que antecederá a realização das eleições europeias. Não por falta de qualidade dos principais candidatos, que nuns casos é por demais reconhecida e noutros não deixará certamente de se manifestar nos tempos mais próximos, mas sim pela circunstância de se constatar uma clara tendência para a nacionalização do debate. Dir-se-á que tal é inevitável, justamente pela inexistência de uma verdadeira consciência europeia. Não é verdade, já que a opinião pública foi sendo levada a perceber, nos últimos anos, a profunda articulação entre aquilo que poderemos designar como o nosso espaço doméstico-nacional e esse outro espaço de relação entre o nacional e o europeu. Compete não só aos candidatos, mas também a todos os principais intervenientes no espaço público português, tudo fazer para que nas eleições europeias também se discuta a Europa.