Do espalhafato à introversão: modos de sentir a música
Um concerto coral-sinfónico de acção de graças na Igreja do Loreto, um recital a solo para viola d'arco na Igreja do Convento dos Cardaes.
O acaso fez com que nesta crítica se justaponham um recital a solo e a execução de uma obra comemorativa para dois coros, orquestra e oito solistas. São ocasiões incomparáveis, se bem que em ambos os casos a música se tenha ouvido em igrejas que sobreviveram estruturalmente ao Terramoto de 1755. Uma igreja de freiras carmelitas foi o palco do recital, com música apropriadamente contemplativa; o concerto coral-sinfónico aconteceu na igreja dos italianos, que comemora os 500 anos da sua fundação, e, apropriadamente, programou em acção de graças um Te Deum comemorativo estreado no mesmo espaço e composto, em 1795, por um músico italiano residente em Lisboa.
Comecemos por este último evento. Não é usual o Coro e a Orquestra do Teatro Nacional de São Carlos interpretarem música religiosa do final do século XVIII; a direcção musical foi compreensivelmente confiada a um especialista em música antiga, Marcos Magalhães, conhecido e respeitado pela suas actuações à frente dos Músicos do Tejo. Neste caso, a aposta não foi inteiramente ganha. É certo que os coros foram convincentes, não só pela imponência sonora, mas também pela pronta resposta musical, sem maneirismos de qualquer espécie. A escolha dos solistas pecou contudo por dois erros de casting — um falsetista, Arthur Filemon, cujo fio de voz foi submergido por dois sopranos e um alto naturais; e um tenor, Alberto Sousa, cujo estilo, fortemente marcado pela ópera oitocentista, destoou assumidamente do conjunto, apesar da intensidade expressiva e da qualidade da emissão vocal. De resto, a própria direcção pecou por alguma inflexibilidade, com tempos rápidos a precipitarem e a impossibilitarem a exploração expressiva de algumas passagens orquestrais, e a vontade de ter o Sanctus na continuidade imediata do seu prefácio a prejudicar, com o ruidoso levantar prévio dos coralistas, a fruição da cadência final da soprano. Acresce que a própria música de Giuseppe Totti (176?-1832/3) não se faz geralmente notar pela subtileza artística; exceptuam-se as secções Tu, devito mortis, Iudex crederis e Fiat misericordia tua. Na primeira, a soprano Joana Seara teve uma prestação possante e adequada, se bem que pontualmente com vibrato excessivo (mais patente no solo inicial, Te aeternum Patrem). Na segunda, a contralto Carolina Figueiredo deliciou-nos com o veludo do timbre, o escorreito da emissão, a sensibilidade sem pretensão (já em Dignare, Domine, faltou uma cadência final mais ornamentada e assertiva). A soprano Sandra Medeiros destacou-se em Tibi omnes angeli e Aeterna fac ao evidenciar inteligência musical, correcção estilística e admirável agilidade vocal. O baixo Hugo Oliveira foi um apoio sólido, bem como, em papéis muito curtos, o foram Tiago Mota e Rodrigo Carreto.
Em suma: apesar de várias falhas, este Te Deum de Totti, dado em primeira audição moderna, voltou a cumprir a sua função festiva, para gáudio da grande maioria dos presentes (e pesar dos que não conseguiram lugar na igreja, acumulando-se à sua porta). Mas, na opinião de quem subscreve este texto, houve mais profundidade de sentimento e mais excepcionalidade artística no modesto recital a solo promovido dias antes pela Junta de freguesia adjacente, da Misericórdia. Miguel Sobrinho, com 20 anos, vencedor do Concurso Nacional Vasco Barbosa de 2018, apresentou-se com um programa inteligentemente concebido em torno do exemplo de Bach e do centro tonal Sol: de J. S. Bach, a Suite nº 6 em Ré maior (transposta para Sol); de Max Reger (1873-1916), a Suite nº 1 em Sol menor para viola, composta no último ano de vida, e inspirada em Bach; e de Krzysztof Penderecki (1933-), a melancólica e endiabrada Cadenza para viola solo, escrita em 1984, e que alude ao motivo BACH (sib-lá-dó-si natural).
São peças de uma riqueza imensa mas de uma dificuldade técnica estonteante. O jovem solista impressionou pela sonoridade cheia, pela musicalidade apurada e por um virtuosismo que lhe permitiu acentuar na interpretação quer os traços mais enérgicos, quer os mais dolentes, clarificando o contraponto mais intrincado, em cordas duplas e triplas, sem sacrificar a fluência do discurso. Sendo desejável, como é natural, alguma evolução no sentido do apuramento estilístico (em Bach), de uma maior calma no saborear dos registos expressivos (em Reger) ou de uma segurança acrescida na emissão dos harmónicos (em Penderecki), o recital foi uma lição de arte e, para quem se deixou penetrar pela música, um banho emocional altamente revitalizador.