“Para além da Rússia, agora temos os chineses e os americanos a tentar dividir a UE”
Foi primeiro-ministro da Suécia entre 1991 e 1994, durante as negociações de adesão do seu país à União Europeia, que levou a bom porto, mas também durante uma crise financeira que obrigou o Governo a resgatar vários bancos. Voltou ao Governo entre 2006 e 2014 para chefiar a diplomacia sueca. Liderou o partido de centro-direita Os Moderados até 1999. Foi enviado especial da UE para a antiga Jugoslávia no pico da guerra, alto-representante para a Bósnia-Herzegovina e enviado especial da ONU para os Balcãs. Hoje preside ao European Council on Foreign Relations.
Carl Bildt tem no seu currículo o primeiro email de que há memória enviado por um chefe de Governo a outro, em 1994. O outro chamava-se Bill Clinton. O seu hábito de falar claro sobre a Rússia de Vladimir Putin e sobre as crises na Geórgia e na Ucrânia nem sempre agradou a algumas grandes capitais europeias. Com 69 anos, desenvolveu intensa actividade em vários think tanks europeus e norte-americanos.
Para este antigo primeiro-ministro da Suécia, a Europa não está preparada para um mundo que mudou radicalmente, onde o multilateralismo deu lugar ao jogo de poder entre grandes potências. Será a Europa capaz de ser uma delas? A pergunta ainda não tem resposta. Bildt está preocupado com a liderança de Matteo Salvini em Itália, mas acredita que a generalidade dos partidos populistas já estabilizou o seu crescimento. Nem os vê a dominar o próximo Parlamento Europeu. A grande questão política está em que o número de partidos com significado aumentou na generalidade dos países europeus e governar tornou-se mais difícil. O antigo chefe da diplomacia sueca critica ainda as tentações proteccionistas. Na sua opinião, as economias com maior sucesso são as que mais se globalizaram. Mas admite facilmente que a União Europeia tenha de rever as suas políticas de concorrência — sob pena de não ter empresas suficientes na liga dos grandes.
O mundo mudou para lá do que poderíamos imaginar há meia dúzia de anos. A Europa está preparada para enfrentar esta nova realidade internacional que lhe é muito mais adversa?
Não [risos].
Mas está, pelo menos, a preparar-se para ela?
Não está preparada para este novo mundo. E é ainda incerto que se esteja a preparar para ele. Durante os últimos dez anos, mas sobretudo nos últimos dois ou três, passámos a viver num mundo que é muito mais incerto. Enfrentamos uma Rússia revisionista; uma China muito mais assertiva; e uns Estados Unidos desorientados e desestabilizadores. São três novos factores. O que os americanos estão a dizer, e que penso que está certo, é que entrámos num período de competição entre grandes potências. A questão, portanto, é esta: a Europa é uma grande potência? Ou será um sujeito dos jogos entre as grandes potências? Estamos preparados para defender os nossos interesses e os nossos valores num mundo muito mais complexo? Não creio que haja na Europa a consciência suficiente desta nova realidade.
Porquê? Porque falta essa ideia de que a Europa tem de ser uma potência? Há dez ou 15 anos, a ideia da Europa como uma “superpotência”, como alguns diziam, chegou a ser defendida até no sentido de rivalizar com a superpotência americana, no bom sentido, naturalmente.
Hoje, tem de ser muito mais forte do que é. E a verdade é que muitos europeus se sentem desconfortáveis com a ideia de potência. A Suécia entrou na União Europeia em 1995, mais ou menos dez anos depois de Portugal, mas era uma altura em que apenas falávamos de soft power. A Europa era o território das regras, uma potência normativa, era atractiva, o seu soft power era o alargamento e tudo parecia correr muito bem. E nós acreditávamos que o mundo ia na direcção do multilateralismo e a Europa era o modelo para o mundo.
Hoje, estamos a despertar para o facto de não ser esse, afinal, o caso. O mundo vai na direcção contrária. Afasta-se do multilateralismo, vai em direcção a uma realidade multipolar, que é complicada e conflitual, e as nossas velhas formas de pensar já não funcionam neste mundo novo.
Estamos preparados para nos adaptarmos e para defender os nossos interesses e os nossos valores? Ainda não sabemos. Para alguns, sobretudo deste lado da Europa, defendermo-nos de uma Rússia revisionista é muito importante, mas nada de particularmente novo. A Rússia está ali há bastante tempo. Mas, quando temos a China a entrar em cena, isso é realmente novo. Os europeus habituaram-se a viver com uma outra relação com os Estados Unidos. E agora quando enfrentamos uma América desestabilizadora, que age de forma deliberada para subverter a União Europeia, é uma situação absolutamente nova.
Falou da Rússia, que, como disse há pouco…
... Está mesmo ali…
Está mesmo ali. Quando a Rússia invadiu a Geórgia em 2008, era então o ministro sueco dos Negócios Estrangeiros, teve palavras muito duras, tentando chamar a atenção para o que isso significava para a Europa. Mas foi rapidamente “desautorizado” em Berlim. Achava-se que ainda era possível uma parceria com a Rússia. Hoje, já não é assim, sobretudo depois da Ucrânia e da anexação da Crimeia. A chanceler conseguiu, apesar de tudo, manter a Europa unida perante esta nova ameaça. Podemos dizer que a Europa já tem algo que se assemelhe a uma estratégia para lidar com a Rússia?
Creio que estamos em melhores condições do que muitos pensariam que estivéssemos. Há alguns anos havia ainda muita gente a dizer que não teríamos nunca uma abordagem comum e que as sanções acabariam por ser levantadas. E a verdade é que nada disso aconteceu. Mantivemos as sanções contra a Rússia, apoiadas pela Alemanha e pela França. Os americanos acompanharam-nos.
Com Barack Obama.
Sim. Conseguimos apoiar a Ucrânia, mesmo que devêssemos ter feito mais. A Ucrânia obteve o seu acordo com a União Europeia. Ainda não conseguimos a resolução do conflito, mas isso deve-se sobretudo ao facto de a política russa ter ido numa direcção oposta. Até agora, não sabemos o que pretende fazer realmente. A NATO também tomou medidas significativas. Penso que estamos melhor em matéria de política russa do que muita gente pensaria há algum tempo.
Referiu a NATO. O outro grande problema da Europa, se não mesmo o maior, está em que os EUA sempre garantiram a segurança europeia e a defesa colectiva e hoje deixámos de ter essa certeza. É verdade que os EUA estão envolvidos nas missões de dissuasão nas fronteiras dos países bálticos com a Rússia…
O mais importante nos bálticos não é tanto os americanos estarem envolvidos. É a presença militar dos ingleses na Estónia, dos canadianos na Letónia, dos alemães na Lituânia, dos americanos na Polónia. O facto de ter havido um amplo envolvimento da NATO é um sinal muito positivo. É mais importante do que estarem lá os americanos.
James Mattis demitiu-se em Dezembro de secretário da Defesa. Era visto pelos europeus como a última garantia de continuidade da relação transatlântica. A Europa ainda pode confiar nos EUA para a sua defesa colectiva? Ou estamos a entrar numa nova era a que alguns chamam “pós-transatlântica”? De outra maneira: quando Donald Trump sair, acha que tudo volta ao que foi antes?
Não. Não creio que voltemos exactamente ao que havia antes de Trump. Será de certeza melhor, porque a aliança transatlântica ainda tem um forte apoio nos EUA. O actual Presidente não faz parte desse grupo e isso introduz um elemento de incerteza. Mas a Europa continua a depender, em boa medida, do apoio militar americano, não há qualquer dúvida sobre isso. A questão é que, cada vez mais, os Estados Unidos vão ter de levar em consideração o crescimento do poder chinês e isso quer dizer que, mesmo que gente mais amiga da Europa regresse ao poder em Washington, as coisas serão diferentes. Porque os EUA vão ter de dedicar uma parte cada vez maior dos seus recursos políticos e militares à Ásia oriental, perante o crescente poder da China.
Hoje, a economia chinesa e americana são, mais ou menos, equivalentes. A despesa militar americana é muitíssimo maior do que chinesa. Mas, em 20 ou 25 anos, com o crescimento actual, a economia chinesa será duas vezes o tamanho da economia americana e a despesa militar chinesa talvez já seja idêntica à americana. Isso altera o mundo de uma forma radical. E obriga a América, independentemente de Trump, a estar muito mais virada para o que acontece na Ásia oriental, obrigando, por sua vez, os europeus a fazerem muito mais por si próprios. Temos um problema com Trump e temos um problema para lá de Trump.
A Europa está a tentar fazer alguma coisa no campo das suas capacidades militares e na política de segurança e defesa. A PESCO, a Iniciativa de Intervenção Europeia, proposta por Emmanuel Macron, o Fundo de Investimento na Defesa. Vai na boa direcção? Suficientemente depressa?
São decisões importantes, sem qualquer dúvida. Mas não lhes chamaria política de defesa, antes política para a indústria de defesa. É o que a Comissão está a fazer. É importante, mas não vai ser suficiente. A iniciativa francesa é, talvez, a coisa mais interessante, sobretudo no sentido de que traz para dentro [da defesa europeia] o Reino Unido. Não nos podemos esquecer que o Reino Unido representa cerca de 30% da capacidade militar da União Europeia. É muito.
E a França talvez outro tanto…
Exacto. Mas há mais: em termos de investigação na área da Defesa, eles representam cerca de 40% do total da União Europeia. Com a tragédia do “Brexit”, precisamos de encontrar estruturas de defesa que amarrem o Reino Unido à União Europeia. Aquilo que está a ser feito em matéria de indústria também é importante e o que negociarmos com o Reino Unido tem de levar esta realidade em conta.
O “Brexit” está a aproximar-se de uma catástrofe…
Completamente de acordo.
Os britânicos têm essa capacidade militar que mencionou, uma economia poderosa, lideram em matéria de investigação científica e tecnológica, mas deixaram-se cair num verdadeiro caos político. A Europa não sabe como lidar com a situação. O que é que vai acontecer?
Adoraria saber.
Mas numa perspectiva de longo prazo?
É um grande problema. Grande parte do debate está centrado agora nas questões comerciais e na fronteira da Irlanda. Quando estas duas questões forem resolvidas — e espero que sim, embora não tenha a certeza —, temos de lidar com as questões de segurança e as questões políticas. Portugal tem a aliança mais velha do mundo com o Reino Unido.
Exactamente. O Tratado de Windsor.
Nós, no Norte da Europa, temos laços muito antigos em matéria económica e de segurança. Temos de garantir que, nesta dimensão da arquitectura de segurança europeia, as coisas fiquem bem resolvidas. Esta é uma mensagem que nem toda a gente em Bruxelas compreende.
Pois não. Às vezes, até parece o contrário, que se regozijam com a saída dos britânicos.
Mas creio que é bem entendida em Paris e também começa a ser bem entendida em Berlim.
Falou da indústria de defesa. Basta ter estado atento aos jornais europeus das últimas semanas para constatar a dificuldade, por exemplo, em comprar europeu para melhor compatibilizar as respectivas capacidades militares. Os belgas encomendaram uma enorme quantidade de F-35 para renovar a sua força aérea. Portugal, a Holanda, alguns nórdicos e os países de Leste fazem a mesma coisa. Estou apenas a dar um exemplo dos aviões de combate. A Alemanha hesita entre os americanos e os Eurofighter, um consórcio com os ingleses e os espanhóis. A Suécia tem os seus próprios Gripen. A França, os Rafale. A Europa usa 17 carros de combate diferentes e os EUA só têm um. Como é que se cria alguma sinergia no meio disto tudo?
É aqui que este novo fundo europeu de defesa e outros da mesma natureza podem fazer alguma diferença nos próximos anos. Mas claro que estas coisas levam tempo. Os franceses e os alemães estão agora a dar início à discussão sobre o fabrico conjunto de um novo tanque. Para o fabricar, vai levar uns dez anos. E mais outros dez até que possamos tê-lo nos nossos respectivos exércitos. Estamos a falar de muito tempo. Mas é importante que se comece e, sobretudo, que os recursos para a I&D [investigação e desenvolvimento] sejam o mais possível utilizados em conjunto.
A Suécia tem uma forte indústria de defesa e também gosta de vender os seus produtos.
É verdade, somos bastante fortes nesse domínio. Mas fazemos coisas que são diferentes daquelas que os americanos fazem. Os nossos sistemas não são tão caros e estão mais virados para as potências pequenas e médias. Se comparar o nosso avião com os F-35, verifica que estes podem voar distâncias muito maiores, porque os EUA têm de transportar tropas para muito longe. O alcance dos nossos aviões é menor, porque nunca precisamos de fazer o que os americanos fazem.
Mas a Suécia, precisamente, tem uma forte relação com os EUA em matéria militar, incluindo industrial.
Sim, sem dúvida.
A Europa precisa de encontrar um equilíbrio entre o que fabrica e o que os EUA fabricam?
Os nossos aviões de combate têm motores americanos. Temos um radar que desenvolvemos em conjunto com os britânicos e os italianos. É este o caminho.
A China, como já disse, é o grande desafio que temos pela frente. Está agora numa fase de “ascensão não tão pacífica” como na fase inicial, lançada por Deng Xiaoping. Hoje, na Europa — nomeadamente, na Alemanha —, toda a gente discute o que se deve fazer com o investimento chinês, quando antes o que interessava eram os mercados chineses. A França sempre defendeu os “campeões europeus” mas, de repente, os alemães também defendem, como se viu agora com a política industrial apresentada pelo ministro da Economia. A Suécia é um país que, por tradição, defende os mercados livres e a livre concorrência. Qual é o caminho?
E continuamos a defender. Temos por tradição uma ideia muito céptica em relação a políticas industriais ao estilo francês. As nossas indústrias têm-se dado muitíssimo bem nos mercados globais. Damos-lhes apoio através de uma educação de alto nível, na investigação nas universidades, permitindo-lhes uma capacidade competitiva nos mercados globais. Dito isto, também discutimos aqui as consequências da China na nossa economia — se precisamos, por exemplo, de um sistema de monitorização mais elaborado. A grande experiência que temos com a China é a Volvo, que começou por ser comprada pelos americanos e, depois, pelos chineses. Até agora, as coisas correram bem. É dirigida como qualquer outra empresa sueca, com a diferença de que está agora em grande expansão na China. Não é uma experiência negativa. Tivemos um ou dois exemplos de tentativa de compra de empresas de altíssima tecnologia, que não nos agradaram muito. Estamos agora em plena batalha da Huawei, mas sempre estivemos. O mundo apenas tem, para além da empresa chinesa, a Ericsson sueca e a Nokia finlandesa. Os americanos não têm nada. A Nokia foi comprada pela Alcatel francesa. Estamos no centro desta batalha.
Mas o ministro alemão da Economia começou agora a falar de “campeões europeus”. É uma mudança?
É, sem dúvida. Mas também li nos jornais alemães que, nos meios económicos, nem toda a gente ficou satisfeita porque percebe os riscos. E há riscos. Se olharmos para os franceses, vemos que historicamente desperdiçaram imenso dinheiro com isso, sem grande resultado. Uma atmosfera de concorrência é sempre boa. Mas temos de estar atentos. Eu partilho de muito daquilo que os franceses têm dito, e agora os alemães, sobre a necessidade de olhar de novo para a política de concorrência da União Europeia.
Houve agora o caso da Siemens e da Alstom.
Exacto. E creio que eles têm alguma razão. Se as empresas, por si próprias, tomam decisões — que não são dos governos de Paris ou de Berlim —, no sentido de que precisam de se juntar para enfrentar os chineses, não creio que as devamos impedir. Porque, cada vez mais, as regras vão ser as dos grandes contra os grandes. E se não tivermos grandes, se não tivermos empresas na liga dos grandes, corremos o risco de desaparecer.
Falou do investimento chinês na Suécia. O argumento para alguns grandes investimentos chineses em Portugal foi que, durante a crise, quando ninguém queria investir no país e o governo tinha de privatizar, os chineses investiram. Mas fica sempre a questão da influência política. Podem sempre utilizar esses investimentos como forma de tentar influenciar as decisões à mesa da União Europeia. Há um risco?
Esse risco também vem com o investimento. Vimos isso com os húngaros ou os gregos, por exemplo, em algumas ocasiões em que os chineses foram politicamente brutais em relação aos respectivos governos, que têm bloqueado algumas decisões na União. Temos de estar atentos. Não vejo qualquer risco de isso acontecer num país como a Suécia…
Hoje, a presença chinesa é muito forte em quase todos os países da Europa de Leste.
Sim. Também têm uma presença muito forte nos Balcãs — no Montenegro, na Sérvia, com um projecto de caminho-de-ferro. No resto, não creio que esse investimento na Europa seja demasiado. Mas não há qualquer dúvida de que os chineses estão a usar estes meios para obter influência política em alguns países mais pequenos.
E a Europa tem de passar a olhar para isto de uma óptica política?
Temos de estar mais conscientes. E temos de estar mais atentos à questão da salvaguarda das empresas de alta tecnologia.
Deve ser uma abordagem europeia?
Precisa de ser coordenada. Como sabe, há um novo sistema de screening que está a entrar em funcionamento e que permite essa coordenação. E há, como referiu, um debate muito interessante na Alemanha sobre a relação com a China. Vamos ver.
Mesmo com todos estes desafios internacionais, a Europa enfrenta um problema interno talvez ainda mais complicado para o seu futuro: a afirmação dos partidos populistas e nacionalistas que, de alguma forma, desafiam a própria integração europeia. Alguns já estão nos governos, como na Hungria, Polónia, Itália, Áustria. Até no seu país, no famoso modelo sueco de bom funcionamento do sistema político e social, já há uma formação de extrema-direita com resultados muito fortes nas eleições. É este o elo mais fraco para enfrentar o futuro?
É obviamente preocupante. Mas creio que há diferenças significativas entre os vários países. Se olhar para a Alemanha ou para Suécia, não há qualquer dúvida de que fomos ambos muito afectados pela vaga de refugiados, a partir de 2015. Noutros países pode ser um pouco diferente. Talvez com a excepção de Itália, com Matteo Salvini [vice-primeiro-ministro e líder da Liga], não estou a ver esses partidos continuarem a crescer. Estabilizaram em redor dos 15 ou 20% em muitos países. Quando pensamos nas eleições europeias, temo que Salvini vá ter sucesso e veremos qual será o efeito. De resto, creio que vai ser interessante observar a Polónia, porque me parece que o pêndulo já começou a mover-se na direcção oposta. O que também constatamos é que o apoio à União Europeia tem aumentado em quase todo o lado, talvez em reacção a Trump, ao “Brexit” ou a Vladimir Putin. As pessoas estão relutantes e desconfiadas em relação à questão da imigração. Mas também me parece que começam a compreender que precisam de Bruxelas. Não gostam de Bruxelas, mas precisam dela. Num mundo com Trump e com Putin e em que assistimos à confusão total em que está o Reino Unido, precisamos de nos manter juntos.
Na Suécia ou na Alemanha, foi sobretudo a questão dos refugiados — foram os dois países que receberam um maior número em proporção com a população. Mas, por exemplo, em França, Itália, em parte, e noutros países o que se vê é o descontentamento crescente de gente que a globalização deixou para trás e que sente cada vez mais isso.
Não é só a imigração, tem razão. Mas eu argumentaria que, se olhar para as economias mais globalizadas da Europa, são as que se têm comportado melhor.
A Suécia…
Sim, a nossa economia é totalmente globalizada. A economia alemã, as economias nórdicas, também. E são as que estão a ter melhores resultados. A política económica francesa, na minha opinião, não tem sido muito impressionante. A italiana absolutamente nada impressionante. O facto é que, quando olha para a Europa, os países que estão mais globalizados conseguem gerir os seus problemas económicos bastante bem.
A Suécia, a Alemanha ou a Finlândia, são economias globalizadas que mantiveram níveis de protecção social muito elevados.
Sim, é verdade. Mas pudemos fazer isso porque tínhamos a capacidade económica para o fazer. Evitámos grandes défices. Tivemos de fazer alguns ajustamentos aos nossos benefícios sociais, mas mantê-los dependentes de se ter uma política económica bem-sucedida. Mas também pagamos impostos que são provavelmente mais altos do que em Portugal. Em contrapartida, os impostos em França são hoje mais elevados do que na Suécia, sem conseguirem o crescimento económico que nós temos.
O Presidente Macron começou a fazer reformas profundas…
Começou a fazê-las e creio que são necessárias. A França é um país muito difícil de governar — já foi provado muitas vezes ao longo da sua História…
Sim, mas sem a França a puxar pela Europa, é difícil. E Macron, com todos os seus problemas, é porventura a coisa mais parecida com um líder de que a Europa dispõe neste momento.
Sim. O sucesso de Macron é muito importante para toda a Europa, isso sem dúvida. Se a França falhar as reformas, sofreremos todos de uma maneira ou de outra. Só posso desejar que a iniciativa que ele tomou com estes diálogos nacionais tenha sucesso. À distância, dirigir-se directamente às queixas e aos problemas das pessoas parece uma boa ideia. Mas a liderança também é a capacidade de explicar a necessidade de fazer certas coisas para ter bons resultados, num mundo que mudou completamente. Na França, vive-se muito essa dicotomia entre as grandes cidades e o resto.
É um problema que não se limita à França. Em muitos países europeus, mais ricos ou mais pobres, é esta espécie de rebelião contra as elites que alimenta os movimentos populistas. Ao mesmo tempo, quando olhamos para os governos europeus ou para Bruxelas, dá ideia de que nada se passa, que o antes da crise é igual ao depois da crise.
O mais importante desenvolvimento de longo prazo a que estamos a assistir na Europa é que a paisagem política é mais complicada. Há muito mais partidos. E os partidos que costumavam ser mais fortes deixaram de o ser. Isso significa que governar se tornou muito mais complicado. A Suécia levou muito mais tempo do que era habitual a negociar um novo governo depois das eleições de Setembro. O mesmo aconteceu na Alemanha. Na Bélgica, já nem sequer nos surpreende. Vai haver em breve eleições na Finlândia e na Dinamarca e tenho a certeza de que vai ser também muito complicado formar governo. Temos uma fragmentação da paisagem política e temos estes partidos de extrema-direita. Mas, por exemplo, na Alemanha, o facto politicamente mais interessante é o crescimento dos Verdes…
Mas também a ascensão da extrema-direita da AfD.
Sem dúvida. Mas, nos últimos tempos, o facto mais interessante foi o crescimento dos Verdes. A AfD estabilizou. Vamos ver. Há uma situação política mais complicada, sem dúvida, que torna tudo mais difícil. Aprendemos com a crise em termos de política económica? Em alguns países, sim. Na Europa do Norte, houve países que atravessaram tempos muito difíceis. A Letónia foi, talvez, o país que mais sofreu, depois dos gregos. Mas fizeram grandes mudanças e agora estão muito bem. Irlanda, Espanha e Portugal — nada mal. Em França, vai ser preciso ver o que acontece. Em Itália, estão a avançar na direcção errada — a economia voltou a cair em recessão. A Grécia já virou a esquina.
Mas também é interessante verificar que, mesmo com os fundamentos das economias mais sólidos, as previsões económicas são no sentido de um forte abrandamento. Por razões politicas?
Há um abrandamento da economia mundial e as guerras comerciais são um dos aspectos que o justificam. Também assistimos a algum abrandamento da economia chinesa, alguma redução no comércio internacional e, além disso, há os ciclos económicos. A economia está a comportar-se muito bem há muito tempo e há sempre estes altos e baixos. Vai ser interessante, ou se quiser desafiante, porque tivemos um período em que quase todas as economias europeias estavam a crescer, mas agora estão confrontadas com um ambiente global menos favorável e aumenta o risco de haver países que continuam a sair-se bem e outros menos bem.
A Alemanha é crucial e o Governo baixou para 1% a previsão de crescimento para este ano.
Vi isso. É um mau sinal para todos. Há uma explicação ligada ao comércio e há outra ligada ao “Brexit”. Se houver um “hard Brexit”, isso vai afectar imediatamente a economia alemã e a holandesa, para além da irlandesa, que será a mais afectada. A Suécia também vai sofrer bastante e haverá um impacte negativo sobre todas as economias, mesmo que indirecto. Trump e o “Brexit” tornam as coisas mais difíceis, sem dúvida.
A Alemanha opôs-se à conclusão da União Bancária e a um orçamento próprio da zona euro, que Macron defendia. Continua a haver uma profunda divisão entre o Norte e o Sul. O euro já é suficientemente forte para enfrentar uma situação económica menos favorável ou uma nova crise?
Penso que sim. Não tenho grande dúvida sobre isso. A União Bancária ainda precisa de mais alguns passos. Vão acabar por ser dados. Há o problema da mutualização da dívida, que é sempre complicado. E nunca acreditei muito nessa ideia do orçamento da zona euro porque, para que ele significasse alguma coisa, teria de ser muito grande.
Era essa a ideia inicial de Macron.
Mas ele nunca lhe atribuiu um valor. Para haver um orçamento com um impacte real, teria de ser 3 ou 4% do PIB. É demasiado. O actual orçamento da União é de 1% do PIB. Um outro orçamento duas ou três vezes maior não cairia bem nem nos eleitores alemães, nem nos portugueses ou nos espanhóis.
As perspectivas para as eleições europeias de Maio não são propriamente as melhores. Há alguns cenários assustadores. Pode acabar por ser um grande problema?
Há alguns cenários muito negativos, é verdade. Mas também não nos podemos esquecer de que, quando olhamos hoje para o Parlamento Europeu, já lá está um partido antieuropeu muito forte, que é o UKIP e que vai desaparecer [com a saída do Reino Unido].
Mas há novos partidos da mesma linha — a Liga de Salvini, Marine Le Pen, os Democratas Suecos — que podem ter bons resultados.
Esses partidos vão ser mais fortes, mas não vejo qualquer hipótese de que consigam dominar o PE, que vai continuar a ser dominado pelos partidos habituais — o PPE, os socialistas, os liberais, mesmo que um pouco mais enfraquecidos. O que me preocupa mais é a Itália de Salvini. Mas, há cinco anos, Matteo Renzi estava em alta, com uma vitória de 30 e muitos por cento nas eleições europeias. Hoje, desapareceu da face da Terra. Salvini pode vir a ter um resultado tão bom, mas não sabemos o que lhe acontece amanhã. Creio que a Polónia pode ter um resultado melhor do que esperaríamos. Mas o que me preocupa, mais do que o PE, é o que pode acontecer à nova Comissão, porque alguns governos podem enviar comissários que dificultem muito o seu trabalho.
Regressando à política externa europeia, que a situação internacional torna cada vez mais necessária, é fácil de ver que continua a não ser fácil à Europa entender-se sobre as grandes questões internacionais. Num caso como o da Venezuela, não se chegou a uma posição conjunta. Andamos a dizer há décadas que a Europa tem de falar a uma só voz, mas nunca conseguimos. Acabar a unanimidade é uma maneira de avançar?
Sempre fui contra essa ideia, mas estou a começar a mudar de opinião. Temos de começar a procurar formas que nos permitam sair do constrangimento da unanimidade em tudo. Penso que a unanimidade ainda é importante para salvaguardar os interesses e os direitos dos países mais pequenos, como a Suécia ou Portugal, para que nem tudo seja decidido em Paris e Berlim. Mas deve haver áreas específicas de política externa, por exemplo, o nosso comportamento nas Nações Unidas, o que defendemos no Conselho dos Direitos Humanos, em que não devemos permitir que um Estado-membro consiga bloquear as decisões. Fui ministro dos Negócios Estrangeiros durante oito anos e, que me lembre, houve apenas uma situação em que um Estado-membro bloqueou uma decisão. Isso acontece muito pouco. Mas também vivi um conjunto de situações em que houve questões difíceis para alguns países específicos, mas em que recorremos à abstenção construtiva. Esses países não bloquearam uma tomada de decisão, mas mantiveram-se afastados. Eles aceitaram que os outros avançassem, nós aceitámos que eles não participassem. Podemos gerir as coisas com um espírito mais aberto, mas precisamos de regressar a esse espírito e, talvez, olhar para algumas áreas em que seja possível adoptar um voto por maioria. Mas não em tudo.
Falou de Paris e de Berlim. Nos dias de hoje, o problema é mais não se entenderem para decidir seja o que for do que tomarem decisões para as impor aos outros. Como é possível contornar esta situação?
Fui ministro dos Negócios Estrangeiros e digo-lhe que o Conselho não era dominado pelos franceses e pelos alemães. Havia sempre um debate aberto entre os ministros. Precisamos, isso sim, de um (ou de uma) alto-representante forte, que consiga trabalhar com os Estados-membros — isso creio que é muito importante. Também houve uma mudança no sentido de tornar o Conselho Europeu cada vez mais importante. O que quer dizer que também é preciso um presidente do Conselho Europeu forte, incluindo em matéria de política externa. Portanto, a escolha de quem ocupará esses cargos é fundamental para que possam trabalhar com confiança com os Estados-membros e organizar as discussões e as conclusões.
Mas o problema é que, nos últimos tempos, os governos não parecem gostar muito de escolher personalidades fortes para esses cargos.
Algumas vezes, não. Mas creio que muitos governos estão a começar a compreender que o mundo mudou mesmo e que é tudo muito mais complicado. Podemos ficar muito felizes quando vemos a bandeira sueca hasteada ao lado da bandeira francesa, mas isso já não chega. Ninguém tem dúvida de que a Rússia tenta dividir a União Europeia — aliás, não é nada de novo e nunca teve grande sucesso. Mas agora temos os chineses e até os americanos a tentar fazer o mesmo — dividir-nos.
Começa a haver um sentimento de urgência?
Exactamente, é esse o termo — urgência. Porque, se permitirmos que o mundo exterior nos divida, desapareceremos.
Falou de interesses e de valores, mas por estes dias os Direitos Humanos quase desapareceram da política externa europeia, para não dizer mundial.
É verdade. E aí temos realmente um problema, quando alguns países não querem dizer seja o que for que possa parecer uma crítica à China. Aliás, se não formos críticos em relação aos chineses, eles próprios não nos levarão a sério, nem seremos levados a sério por mais ninguém. Se apenas criticarmos a Mauritânia — se fosse caso disso —, mas nunca criticarmos a China, deixamos de ser credíveis.
Na Suécia, a presença da Rússia é incontornável, como já referiu. Para os países do Sul da Europa, a instabilidade no Médio Oriente e no Norte de África é um problema que sentem com muito maior proximidade. Também aqui tem sido difícil estabelecer uma abordagem comum à União Europeia.
Sim. Uma das coisas mais preocupantes a que assistimos nos últimos tempos foi ver os franceses e os italianos a competirem um contra o outro na Líbia. E a Líbia é um daqueles lugares onde tínhamos mesmo de ter uma política comum para lidar com o que se lá passa, porque todos temos o mesmo interesse.
E temos alguma responsabilidade…
E temos uma parte da responsabilidade, é verdade. Mas tem sido muito difícil. Creio que também deveríamos ser mais activos nas questões do Médio Oriente. Temos a mesma abordagem em relação ao processo de paz israelo-palestiniano, com algumas excepções…
Mas sem os EUA é muito difícil agir.
É difícil. Mas estamos unidos quanto ao Irão, depois da saída dos EUA do acordo nuclear. Mas em muitas das questões do Médio Oriente temos problemas enormes com os EUA, o que não facilita as coisas.
Passamos a vida a falar de segurança energética, num continente que praticamente não tem recursos petrolíferos. Mas, ao mesmo tempo, estamos a assistir à construção de mais um gasoduto para ligar directamente a Alemanha à Rússia — o Nord Stream II. O Nord Stream I já levantou uma enorme polémica. Como é possível a construção de um segundo?
Não são apenas os alemães, são os holandeses e os britânicos também.
Refere-se às empresas privadas que o vão construir.
São parte do projecto. Penso que é muito infeliz, mas não foi possível resolvê-lo a nível europeu. E os seus efeitos afectam de forma negativa a nossa política para a Ucrânia. Temos de ter políticas energéticas mais coerentes. Creio que estamos melhor agora do que há dez anos, quando não tínhamos praticamente nada. Ainda me lembro da crise do gás com a Rússia em 2006.
Quando Moscovo fechou a torneira do gasoduto que alimentava o Centro da Europa a pretexto de penalizar a Ucrânia.
Estamos um pouco melhor.
E a Alemanha está sempre no centro da questão.
Está, embora não seja a única. Os alemães decidiram livrar-se da energia nuclear e, agora, do carvão, por isso precisam de alguma coisa para substituí-los, porque não têm nem sol nem vento todo o ano e isso não resolve o problema. Creio que não foi a melhor decisão acabar com a energia nuclear de forma tão rápida. Nós temos sorte, aqui em cima. A Suécia tem 40% de energia hídrica e 40% nuclear — é uma boa mistura graças à geografia e a alguma sorte.
Ainda não falámos das alterações climáticas, outro dos mais urgentes desafios globais em que a Europa, apesar de tudo, tem conseguido liderar. Mas há a sensação de que ninguém está a fazer o suficiente. Nem sequer na Europa?
É verdade, mas não completamente. A Europa foi corajosa ao assumir há já alguns anos a liderança deste combate. Não há dúvida sobre isso. Conseguimos, se não construir um mundo melhor, pelo menos tornar o mundo mais atento ao problema, nomeadamente, com o Acordo de Paris. Agora, estamos a começar a não fazer o suficiente.
A própria Europa?
A própria Europa. E a Alemanha é o problema número um. Mas, se olhar para os desenvolvimentos tecnológicos, há imensa coisa a acontecer.
Quer dizer que um problema hoje pode ter uma solução tecnológica amanhã?
Sim, daqui a dez anos. É essa a nossa esperança.