Diogo Infante questiona a vida normal para quem é testemunha da guerra
O encenador apresenta no Teatro da Trindade, Lisboa, até 31 de Março, um texto do dramaturgo norte-americano David Margulies. Zoom parte do universo do jornalismo de guerra para reflectir sobre as grandes escolhas de que é feita cada vida.
Nas obrigatórias listas de melhores livros do ano, as escolhas das publicações anglófonas de 2018 destacaram recorrentemente In Extremis, tomo assinado por Lindsey Hilsum cujo subtítulo explica quase tudo: The Life of War Correspondent Marie Colvin. Assassinada na Síria em 2012, Colvin notabilizou-se pelas reportagens que produziu para o Sunday Times a partir dos lugares mais perigosos deste mundo. O seu rosto era facilmente reconhecível graças à pala que usava sobre o olho esquerdo, depois de ter cegado dessa vista na sequência do rebentamento de uma granada quando se encontrava no Sri Lanka, em mais um dos cenários de guerra que sempre procurava testemunhar. A figura de Colvin não será estranha àqueles que, entretanto, se tiverem cruzado com Rosamund Pike no filme Uma Guerra Pessoal, baseado, precisamente, na sua vida.
Não existe, à superfície, qualquer ligação efectiva entre a história de Marie Colvin e a peça Time Stands Still, texto de Donald Margulies estreado na Broadway em 2009. Mas a estreia portuguesa do texto, que Diogo Infante põe em cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, até 31 de Março, não podia ser mais oportuna e nem estar mais sintonizada com a súbita atenção que recaiu sobre a vida da jornalista norte-americana.
Situada num loft de Brooklyn, a peça de Margulies desenrola-se em torno de dois casais, mas foca muito em particular a relação entre Sarah e James. No momento em que as cortinas descerram, Sarah acaba de regressar a casa, ferida numa reportagem no Iraque, depois de atingida por uma mina. James, seu companheiro de vida, deixara-a por lá semanas antes, batendo em retirada para lidar com o seu próprio stress pós-traumático, e não esconde a culpa que o consome por ter partido mais cedo. Os dois, rapidamente o percebemos, vivem num compromisso inquebrável com a adrenalina de tais situações-limite e com a necessidade de denunciar as atrocidades terríveis que acontecem em lugares tomados por conflitos armados.
Só que esse compromisso revelar-se-á, talvez, não tão inquebrável como parece de início. Porque ao receberem a visita de Richard, editor de fotografia do jornal com o qual os dois colaboram, descobrem que este se apaixou por uma mulher mais nova e que, no que toca a relações amorosas, passou de uma “namorada pitbull” para a “adorável” Mandy. E Mandy (Sara Matos) é um corpo estranho no meio dos três. Diz-se uma “provinciana”, apresenta-se como “organizadora de eventos” – um exemplo: lançamento de livro sobre o Darfur nos jardins do MoMa – e surge como uma rapariga leve, superficial, desligada das questões que ocupam os outros. Mas, sem partilhar “a linguagem ou a intelectualidade” de Sarah, James e Richard (Sandra Faleiro, João Reis e Virgílio Castelo, respectivamente), defende Diogo Infante, será ela a levantar “algumas questões difíceis”. Nomeadamente no que toca à ética do trabalho no terreno de Sarah e James: devem documentar passivamente aquilo a que assistem e gritá-lo para o mundo inteiro saber, ou intervir nas realidades que presenciam?
“Mandy representa sobretudo uma normalidade, um olhar com o qual a maior parte das pessoas poderá identificar-se”, acredita o encenador, que assistiu à peça de Margulies em Nova Iorque, há dez anos, e logo a traduziu no regresso, deixando-a na gaveta à espera da ocasião certa para a apresentar. “As pessoas que não se revêem nos meandros de um determinado tipo de jornalismo, que têm dificuldade em olhar para os cenários de guerra e que podem até condoer-se desse imaginário, mas que, no fundo, regressam ao seu quotidiano.”
Uma "vida normal"
É a presença de Mandy, de facto, a desencadear uma reflexão nas três personagens, colocando-as perante a necessidade “de avançar, de recuar, de perseguir os seus sonhos”, com consequências distintas. É Mandy quem obriga cada um a olhar-se ao espelho e a perceber se a vida que leva é sincera, se aquilo que se entende por normalidade pode, afinal, ser sedutor para quem arrisca repetidamente a sobrevivência ou quem trabalha diariamente com as provas inequívocas dessas realidades. “Todos nós podemos pensar que, em certas circunstâncias, querer uma ‘vida normal’ é quase menor, até sentimos algum embaraço por sermos só normais”, admite Infante. “Mas a normalidade não nos deveria intimidar, da mesma forma que não nos define.”
Zoom acaba por colocar em cima da mesa a importância das escolhas – individuais e conjuntas. Encosta Sarah e James à parede, obrigando-os a questionarem o que querem das suas vidas – enquanto indivíduos, mas também enquanto casal – e a terem de buscar dentro de si o que implica a sua felicidade e a sua lealdade. Algo que tanto pode implicar a dedicação total à profissão e à contínua denúncia dos mais graves atropelos da justiça e do respeito entre seres humanos, quanto reclamar a constituição de uma família e a vontade de levar os filhos até à Disneylândia. “Às vezes”, afirma Diogo Infante, “é preciso ser verdadeiramente sincero e aceitar que aquilo que queremos é bem mais simples do que possamos querer admitir”. É talvez esse o maior zoom que a peça propõe: os dilemas éticos e morais nas escolhas maiores das nossas vidas. E saber viver com as consequências.