Charlotte Rampling, a melhor amiga da câmara
Forte e frágil, atraída por papéis transgressivos mas receosa do que se esconde dentro dela, ainda e sempre magnética, a actriz britânica não tem papas na língua nem tabus. Vimo-la a receber o Urso de Honra da Berlinale por uma carreira singular no cinema mundial.
Como é que mesmo com o seu cabelo grisalho e as rugas da idade Charlotte Rampling (n. 1946) continua a ter aquela extraordinária capacidade de sedução frente à câmara, como se o tempo não parecesse ter passado por ela? “É uma questão de atitude, não é? Da maneira como vivemos a nossa vida, como abordamos aquilo que escolhemos fazer. Sempre senti que a câmara era a minha melhor amiga, tínhamos algo de especial juntos – e não só a câmara de cinema, também a câmara fotográfica. É uma relação muito poderosa.” Fala a sério, mas ri-se logo a seguir, quando uma jornalista lhe pergunta de onde vem a sensualidade que sempre fez parte dessa relação: “Oh, minha querida, os meus anos eróticos já ficaram há muito para trás!”
A actriz britânica veio a Berlim receber um Urso de Honra pela sua carreira – é o regresso ao festival onde ganhou em 2015 o prémio de interpretação feminina por 45 Anos, de Andrew Haigh, que lhe valeu igualmente uma nomeação para o Óscar (ainda hoje a comove o modo caloroso e unânime como o filme foi recebido). Depois do prémio de interpretação em Veneza em 2017 por Hannah, de Andrea Pallaoro, esta homenagem organizada pela Cinemateca Alemã para a Berlinale, acompanhada de uma selecção de dez filmes, é também o coroar de uma carreira sempre feita com papéis de mulheres fortes.
Fortes e frágeis, corrige a actriz diante do pequeno grupo de jornalistas com que se encontrou numa suite do exclusivo Hotel Mandala, mesmo junto ao palácio do festival: “Apenas somos fortes por sermos muito sensíveis e muito frágeis. Uma flor bonita é algo de muito frágil quando nasce, mas ao crescer tem uma força enorme. Nós somos a mesma coisa, há muitas formas de ser forte. É um modo de sobreviver.”
É uma palavra importante para Rampling, que disse em tempos ser actriz para sobreviver. “Decidi que o cinema seria a minha vida – o que não é a mesma coisa que dar a minha vida ao cinema!”, diz. “E se a vida é uma questão de sobrevivência, então o cinema também teria de o ser. Não quis ser uma artista que está ali puramente para entreter uma audiência, quis explorar a psique humana.”
Essa exploração raramente passou pelo teatro (embora em 2010 a tenhamos visto em Portugal num espectáculo de Jean-Claude Feugnet) por opção propositada da actriz, que confessa sentir-se mais protegida e menos exposta num plateau do que o estaria num palco. “Fiz teatro, mas nunca senti ao longo da minha carreira que fosse o meu lugar”, explica Rampling. “Preciso de estar num sítio algo mais íntimo – e quando estou em rodagem o cinema é muito íntimo. Filmar uma cena é a coisa mais íntima que podemos fazer, porque estamos no momento e aquele momento é único. Ninguém está a olhar para nós – sim, há muita gente à nossa volta, mas a equipa técnica não está a olhar para mim, está a fazer o que tem de fazer, provavelmente só o realizador é que está a prestar atenção. É muito mais fácil entrar nas sombras num plateau do que num palco, porque aí temos as luzes em cima de nós, estamos expostos a uma audiência.”
"Tenho terror de mim própria"
Parece haver algo de contraditório nesta necessidade de resguardo por parte de uma actriz que explorou repetidamente papéis extremamente visíveis – como a relação sadomasoquista que mantinha com o seu antigo torcionário das SS (interpretado por Dirk Bogarde) no filme de Liliana Cavani O Porteiro da Noite (1974), ainda e sempre um dos seus filmes mais memoráveis. Outros títulos igualmente controversos no programa da retrospectiva foram Os Malditos, de Luchino Visconti (1969), Para o Sul, de Laurent Cantet (2006), Sob a Areia, de François Ozon (2002) – “um realizador extraordinário, que me ofereceu um papel extraordinário” –, ou Max, Meu Amor, de Nagisa Oshima (1986), em que interpretava uma mulher numa relação amorosa com um chimpanzé.
“Tenho absolutamente uma atracção por papéis transgressivos, sim”, confessa. “Mas isso não significa que aquilo seja eu na vida real; a criação nada tem a ver com a vida real, mas sim com aquilo que somos levados a fazer como artistas. Eu sigo o meu caminho enquanto artista: do ponto de vista da representação, são estas as coisas que me atraem, que me chamam, e se me aparecerem à frente eu aceito os papéis.” Há algo de determinado, peremptório, na sua voz: “É a minha escolha. Eu escolho ir ao encontro destas personagens, que fazem parte de mim.” É fácil “vesti-las e despi-las?”, perguntamos. “Assim como assim, elas estão dentro de mim. Não recorro a elas na minha vida; passam a maior parte do tempo a dormir e não me incomodam muito”, ri-se. “Mas sim, uso-as no meu trabalho. São outras partes de mim.”
E não tem medo delas? “Tenho, e é por isso que tenho de continuar a explorá-las”, admite Rampling. “Tenho muito medo da escuridão, da escuridão subconsciente, e é por isso que tenho de continuar a procurá-la. Tenho terror de mim própria, e por isso entrego-me àquilo que faço até onde o meu medo for, e o meu medo geralmente vai muito longe. E se o meu medo for tão grande como a minha força, então é um desafio, e um desafio que gosto de aceitar. Ou faço ou não faço. E eu faço. Confio que existe algo dentro de mim que me vai salvar; que encontrarei a saída, a entrada, ou o modo de a compreender. Atiro-me de cabeça.”
E não vai deixar de o fazer tão cedo: acaba de terminar as rodagens de Benedetta, o novo filme de Paul Verhoeven (sobre o qual não levanta a ponta do segredo), e vai estar na nova adaptação de Dune pelo canadiano Denis Villeneuve. “Não sou capaz de fazer um filme só por fazer; gosto de sentir que estou a desvendar uma outra camada daquilo que faço. Todas as escolhas que fiz foram as escolhas que quis fazer.” E os olhos de Charlotte, magnéticos, riem-se.