No dia em que leria os esboços de En Agosto nos Vemos, o livro não publicado de Gabo, levantei-me às sete e meia da manhã para esperar a abertura do Harry Ransom Center (HRC). Era uma manhã de sábado chuvosa no oásis libertário do Texas. Um 24 de Outubro de 2015. Às 8h30, eu descia a rua Tom Green, a rua da minha casa. Dava grandes pedaladas na minha bicicleta cruiser de cor laranja rumo ao campus da Universidade do Texas em Austin. Cheguei rápido ao HRC. Subi as escadas num passo apressado para o segundo andar do edifício que se tornara, em 2014, a casa de todo espólio do Nobel de Literatura colombiano Gabriel García Márquez. Estava cobiçosa. Assim como o Bastian de História Sem Fim, fantasiava em ser transportada para outro mundo. O que o mestre do realismo mágico e maior escritor da América Latina teria escrito de fantástico na sua obra não publicada?
Pedi à recepcionista para ver En Agosto nos Vemos. Tinham aberto o arquivo do escritor ao público há somente três dias, mas eu estava à espera daquele momento há um ano. Felizmente, ninguém se tinha adiantado naquele dia. Sentei-me. A bibliotecária trouxe-me uma caixa que não continha só as várias versões da obra inédita em folhas A4 como também a crítica e notas editoriais de Jorge Manzanilla.
Comecei a ler a versão definida no arquivo como “escrita em computador em Los Angeles, sem data”. Estava excitada não só pelo frenesim de ler um livro nunca publicado como também por descobrir o processo criativo de Gabo. Senti algo no estômago que nunca tinha sentido antes. Iniciei a leitura. Gabo começa por descrever Ana Magdalena Bach, a personagem principal, uma mulher de quase 40 anos e casada há mais de 20. Casou-se antes de terminar a licenciatura em artes e letras, virgem, e sem namoros anteriores. Era de uma família de músicos, o marido era músico e um de filhos também. Após a morte da mãe, faz uma travessia de barco de quatro horas, todos os anos em Agosto, no mesmo dia, para visitar o sepulcro numa ilha. É sempre um ritual. Mesmo mês, mesmo dia, mesma florista. Confidencia-se à mãe falecida e pede conselhos. Ana Magdalena entende certas coisas fantásticas que lhe vão acontecendo como respostas da mãe.
Logo no primeiro capítulo há uma cena de sexo sem amor. Ana Magdalena, mulher feliz no casamento, com a experiência de um homem só, tem um caso extraconjugal. Gabriel García Márquez tinha sido capaz de tocar num tabu e desconstruir a ideia de que a mulher só tem relações extraconjugais quando está infeliz. Mas também toca no machismo. Depois da sua aventura sexual, Ana acorda no meio da noite e encontra a sua cama vazia. O homem tinha partido sem aviso. Mas tinha deixado uma nota de 20 dólares. Ana Magdalena chorou de raiva. Com um sentimento de humilhação e frustração, perguntava-se quem teria sido o tal homem que estragara a sua aventura feliz. Pouco sabia sobre ele. Pergunta também à sua mãe diante do seu túmulo o que deveria fazer com a nota de 20 dólares?
A história desenvolve-se a partir deste facto. Como é que ela se sente? O que o segundo homem da vida dela lhe agregou? Devia contar ao marido? Teria ela mudado? Que impacto teria isto no seu casamento feliz, descrito por Gabo assim: “eles sabiam como manter certos costumes de bons amantes, como por exemplo, banharem-se ao mesmo tempo.” Em cada capítulo, referente a um ano, Ana Magdalena tem uma noite de sexo com um homem diferente, sempre numa ilha, sempre no mês de Agosto, quando se desloca para visitar o túmulo de sua mãe.
Ao introduzir a personagem de Ana, Gabo escreveu em espanhol a lápis “hábito de leer”, como que para lembrar a si próprio o perfil psicológico e intelectual da protagonista. Ler um esboço com anotações do autor em folhas A4 sabendo que ele tocou e manuseou aquelas páginas é mais do que um ler um livro publicado. A absorção da narrativa é interrompida pelas notas do autor. É uma sensorialidade literária que faz dilatar as pupilas e suar as mãos. Lemos não só sobre a história. Lemos sobre a escrita. É uma comunicação corpórea com as impressões digitais do autor. As correcções a caneta vermelha feitas pelo próprio Gabo deixa-o despido, vulnerável e indefeso. Serve-nos a nós pobres mortais para entender que a escrita não é simplesmente um dom, mas pode ser um trabalho árduo, experimental e metódico. Ao comparar as diferentes versões de En Agosto nos Vemos observa-se o processo de organização de escrita do autor. Há uma versão em que Gabriel escreve a vermelho na capa da obra “China”. Referia-se a uma personagem chinesa que acrescenta à história. No inicio de cada capítulo escreve à mão quantas páginas aquela divisão terá. Em algumas páginas, risca verbos e substitui-os.
Esta experiência de ler as diferentes versões de En Agosto nos Vemos pode ser vivida por qualquer pessoa na sala de leitura do HRC, uma vez que o arquivo de Gabo é aberto para consulta pública. Mas pode ser também online. O arquivo do escritor colombiano foi digitalizado pela Universidade do Texas em Austin e abrange mais de 27 mil imagens de papéis e fotografias. Isto inclui En Agosto nos Vemos. A experiência para quem quer ler a versão online pode ser incrementada com a impressão de algumas páginas do livro, para se sentir a textura das anotações de Gabo. Ou então uma experiência fantástica digna do realismo mágico, numa espécie de aventura literária que se misture com as aventuras de Ana Magdalena Bach. O que terá ela feito com a nota de 20 dólares? Quanto a isto Gabo escreveu no seu inédito: “Não sabia se o marcava como um troféu ou se o destruía para conjugar a indignidade. O único que não lhe parecia honesto era gastá-lo.”