O Festival Feminista de Lisboa não precisou de “vender a alma” para receber um prémio

É longe de patrões e regras que o Festival Feminista se constrói. Os consensos são custosos, salvo raras excepções, como a que acontece agora. A equipa recebeu, numa alegria uníssona, o prémio Madalena Barbosa, que traz novidades à segunda edição, em Maio.

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Nuno Santos Monteiro

Um grupo que se conhece numa assembleia aberta em Novembro de 2017. Em cinco meses, sem dinheiro ou directrizes, pensa e monta o Festival Feminista que, pela primeira vez, ocupa a cidade de Lisboa em Março de 2018. Mas é agora, já com a preparação da segunda edição em curso, que a cereja cai em cima do bolo: o prémio Madalena Barbosa, que foi atribuído ao festival no final de Janeiro pela Câmara Municipal de Lisboa em parceria com a CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

- Não sei como colocar em palavras o impacto que isto teve na minha vida.

A frase é de Marília Gonçalves, natural do Rio de Janeiro, e reflecte o frenesim que domina a mesa circular de uma das salas do espaço Zona Franca, nos Anjos, com paredes pinceladas a vermelho e um cartaz, no alto, que grita "Marielle, presente!". As palavras da brasileira, que chegou a Portugal um mês antes de se inscrever na convocatória do festival, cruzam com as de Raquel Silva, que viajou da Madeira para Lisboa há dez anos. “Este prémio é a recompensa pelas noites sem dormir ou jantar, a responder a e-mails, a falar com pessoas”.

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Parte da equipa por detrás do Festival Feminista de Lisboa Nuno Santos Monteiro

Contando com Marília e Raquel, cerca de dez membros da equipa do festival estiveram à conversa com o P3 na Zona Franca, um espaço de incontáveis pormenores, onde as paredes estão repletas de colagens e há até um estendal de t-shirts feministas. É aqui que a equipa prepara a segunda edição. À medida que as pessoas iam ocupando as cadeiras vagas, uma condição foi imposta à conversa: ninguém representa ninguém. O festival conjuga-se no plural e não tem porta-vozes. “Não é um assessor que fala do festival, é quem tem disponibilidade para aparecer hoje e falar”, continua Marília.

A equipa é composta por 30 pessoas, na maioria mulheres, de várias idades — a mais nova com 22 anos e a mais velha com 53 — e nacionalidades — Valentina veio do Chile, Federica de Itália, Tila e Marília do Brasil. À excepção de Federica, que só se juntou este ano, todas estiveram presentes na primeira reunião que Raquel convocou em 2017, depois de participar no Festival Feminista do Porto, que existe desde 2015. “Percebi que era algo urgente de trazer a Lisboa, algo de que as pessoas estavam à espera”, explica a jovem de 30 anos. O festival de Lisboa herda o legado do Porto na forma de organização – é feita uma convocatória para reunir quem tem interesse em organizar o festival – e nos ideais – um movimento feminista, anti-racista, anti-homofobia e anti-capitalista.

Nesta segunda edição, o prémio Madalena Barbosa, que entrega sete mil euros ao melhor projecto em torno da igualdade de género, ajuda a que o “festival já não comece do zero, sem um único cêntimo, como no ano passado”, diz Sara Conchita, 36 anos. “Com esta ajuda podemos pagar o transporte e alojamento aos artistas. O ano passado não tínhamos dinheiro para receber artistas que viessem de outros países e nós até chegámos a receber propostas da Rússia e da Áustria”, explica. 

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Ainda assim, ainda não é certo que o festival aceite propostas internacionais já este ano. “Não sabemos quando vamos receber o dinheiro. Se calhar nem conseguimos utilizá-lo já nesta edição e fica só para 2020”, afirma Marília. Para não confiar na incerteza, o grupo vai manter aquela que é “a base mais segura para realizar o festival”: uma campanha de crowdfunding e os eventos de angariação de fundos como um workshop de aguarelas onde os participantes vão desenhar vulvas e falar abertamente sobre sexualidade no dia 14 de Fevereiro, a festa do Carnaval Feminista no dia 4 de Março, na instituição Anos 70, nos Anjos, e um concerto do Fado Bicha no dia 6 de Abril.

Sem patrões nem regras
Além da folga financeira que ajuda a uma gestão mais tranquila, este prémio tem um impacto simbólico para Raquel, de 30 anos. “Mostra que é possível fazer as coisas de forma diferente. Nós ganhámos o prémio sem precisar de vender a alma ao diabo, ao corporativismo”, explica. No Festival Feminista de Lisboa não existe uma hierarquia. Todas as pessoas têm o mesmo peso: são peças necessárias, mas não imprescindíveis, como a colectividade exige. “A prioridade é o colectivo, não procuramos personalizar o festival à imagem de cada um”, conta Tila, 40 anos, “até porque este é também um organismo mutante, as pessoas vão e vêm”.

A equipa é autogerida e o trabalho é sempre feito em grupo. “Toda a gente sabe toda a informação que circula sobre o festival, todos os assuntos são discutidos e todas as decisões são tomadas nas assembleias abertas que se realizam de 15 em 15 dias”, diz Federica Barone, há dois anos em Portugal. “São três horas de discussão num dia. Tens dores de cabeça gigantes, mas és feliz”, sorri a jovem italiana. Nas reuniões, todas dão voz aos seus pensamentos e todas as opiniões recebem a mesma atenção. “É um processo mais lento, mais difícil e também mais cansativo porque estamos habituadas a que alguém nos diga como fazer. Acaba por ser mais rápido quando um manda e outros obedecem”, continua Sara. “Há muita dificuldade em gerir a liderança mas aqui pensamos e fazemos tudo em conjunto. Exige saber ouvir, gerir emoções e energia”, acrescenta. 

O festival é dividido em quatro departamentos: programação, comunicação, financeiro e produção. Mas cada pessoa é que decide onde se quer integrar. “Era mais rápido se fizéssemos no festival aquilo que fazemos profissionalmente, mas preferimos quando pessoas que não se conhecem, nem conhecem a tarefa, se juntam e criam coisas novas”, conta Federica, que, fora do festival, é assistente de produção de um teatro.

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A gestão em colectivo, a ausência de regras, a valorização da descoberta podem tornar tudo mais difícil ou demoroso mas são os pilares que unem a equipa. “Para nós é importante fazer as coisas de forma diferente daquilo que normalmente nos ensinam que deve ser feito. Não íamos reproduzir os mesmos sistemas que nos levaram até aqui, que nos tiraram oportunidades, que nos deixaram de lado”, completa Raquel.

As novidades e as repetições
Nesta segunda edição, o festival continuou a receber propostas de participantes através de um open call, cujo prazo já terminou. Começa, agora, o processo de análise das mais de 150 propostas de workshops, debates, concertos, teatros e exposições. “É como um puzzle que se constrói. Há um emaranhado das peças que se juntam à medida que se diz sim ou não às propostas”, reforça Raquel.

Na primeira edição, o festival teve mais de mil pessoas espalhadas por 17 espaços da cidade e cerca de 60 eventos. Este ano há novidades. O festival vai ser pela primeira vez circunscrito a um tema: Feminismos: A luta no quotidiano. “O feminismo é feito no quotidiano e de várias formas, queríamos explorar essa variedade de temas, de lutas, desde a habitação até à maternidade, e também as várias superações diárias”, explica Valentina Gazalez Vargas, a chilena que vive em Lisboa há quatro anos.

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“Queremos também colocar as diferentes identidades e experiências de mulheres a dialogar”, afirma a jovem, que pretende que a discussão inclua identidades queer, não binárias e transexuais. Em todos os casos, há um fim a cumprir: “Desconstruir os sistemas, padrões, regras, ensinamentos que vamos recebendo e que nos oprimem.”

Ao contrário da primeira edição, que se realizou em Março, este ano o festival vai ocupar todas as sextas, sábados e domingos de Maio. O objectivo é convidar o bom tempo a fazer parte da festa. “Queríamos fazer mais actividades ao ar livre. No ano passado tivemos um torneio de futebol feminino mas este ano queríamos ter mais desportos”, afirma Valentina, sem desvendar quais. E há eventos que, devido ao sucesso da primeira edição, se vão repetir, como é o caso dos Concertos Pimba Feminista e da Feira de Zines, com ilustrações e edições independentes.

O local do festival também não sofre mudanças: vai acontecer maioritariamente nos Anjos. A regra é que todos os eventos do festival sejam gratuitos, para que toda a gente possa aparecer. “Isso só é possível em espaços independentes, que partilham os ideais e tornam o diálogo mais fácil”, diz Sara. “Nos Anjos há muito este espírito de autogestão dos espaços, que são mantidos por colectivos, e são uma alternativa aos espaços comerciais”, explica.

Para Tila, a “descentralização é importante”, mas, para já, “o desafio é tentar chegar a toda a cidade”. “Gostávamos de nos próximos anos chegar a outros lugares periféricos, como a margem sul”.

- Um festival no Funchal! – interrompe, com ânimo, Raquel, da Madeira, que se levanta num ímpeto e provoca uma gargalhada a toda a equipa.

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Equipa prepara o festival na Zona Franca, nos Anjos Nuno Santos Monteiro

O festival que ajuda a bater o pé
O festival também ajudou a formar um novo grupo de amigos — e mudou-os. Ana Cordeiro, 22 anos, é a benjamim do grupo. Chega à Zona Franca já a conversa vai a meio, mas todas se apressam em encontrar uma cadeira vaga para a jovem. Para Ana, o festival deu-lhe mais confiança e também mais consistência ao feminismo que, diz, se manifesta em pormenores na sua vida: “Eu sou muito tímida e estar nas aulas e conseguir falar é uma forma de feminismo porque estou a dar voz aos meus pensamentos”.

Federica diz que o feminismo é uma “componente orgânica” da sua vida. “É como ter um braço, uma mão. Desde que sou pequena que me sinto diferente, sentia que tudo à minha volta dizia que eu era uma coisa que não podia ser, que deveria ser de outra maneira. O feminismo dentro de mim dizia-me que não, que podia ser eu mesma.” Desde que está no festival que a “raiva” que às vezes sente se substitui “pela vontade de fazer arte”. “Sinto uma gratidão imensa e uma esperança pura por estar aqui. O festival dá-me mais coragem, mais liberdade”, acrescenta.

Também para Tila este festival se figura “numa rede de apoio” que a ampara quando o feminismo a “faz ver tudo como não via antes”. “Apercebes-te que há todos os dias há um momento machista, de opressão e o festival ajuda-me a não naturalizar, a dizer algo, a bater o pé”, clarifica. E, quem sabe, a influenciar quem está por perto. "O festival ajuda-nos a mudar pequenos gestos e nós levamos estas coisas a tudo no nosso dia-a-dia, na forma de falar, de estar”, diz João Cardiga, de 40 anos, que é nesta edição um voluntário "que dá uma mãozinha no que for preciso”. “Eu vejo o impacto que tenho na minha família”, exemplifica. E em Lisboa também, afiança Sara: “Daqui a muitos anos, quando escreverem a história do feminismo em Portugal, o festival vai lá estar.”

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