O estranho caso do Dr. De Grauwe e de Mr. Paul
Da próxima vez que o PÚBLICO entrevistar Paul De Grauwe, sugiro que lhe pergunte se está a responder como académico ou polemista.
Na terça-feira da semana passada, foi capa neste jornal uma entrevista a Paul de Grauwe. De Grauwe é um economista belga, professor em Londres e vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas português. É apresentado pelo jornal como "um dos maiores especialistas mundiais em áreas como a política monetária". O destaque dado à entrevista justifica-se plenamente, porque, apesar de ser vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas, nesta entrevista vai contra a orientação dominante do mesmo e contra o que a sua presidente, Teodora Cardoso, tem escrito e afirmado.
Começo por dizer que o debate público precisa de pessoas assim, que são livres e não têm problemas em ir contra o consenso público ou contra as orientações dominantes das instituições de que fazem parte. Não sendo Paul De Grauwe uma personalidade qualquer, vale a pena escutar e discutir os principais alertas lançados.
De Grauwe defende muito mais investimento público. À pergunta sobre se os constrangimentos orçamentais não são um problema, responde que isso é um dogma e que "não há qualquer razão para termos orçamentos equilibrados". Mesmo sabendo que a dívida pública portuguesa representa 120% do PIB, insiste que Portugal deve emitir mais dívida para financiar o investimento público. O argumento é simples e fácil de entender: se a dívida pública for canalizada para o investimento produtivo, então aumenta a dívida, mas também aumentam os activos e com isso geram-se os recursos necessários para pagar a dívida.
Há dois problemas com este argumento de De Grauwe. O primeiro é óbvio. Simplesmente, todos nós já ouvimos este raciocínio antes. E já o ouvimos várias vezes.
Basta lembrar como, ainda em 2009, o Manifesto dos 51 apelava às grandes obras públicas para combater a crise global. Desses 51, mais de 40 eram investigadores ou professores universitários. Dizia o manifesto que o investimento público abriria "um caminho para o futuro: melhores infra-estruturas e capacidades humanas, um território mais coeso e competitivo, capaz de suportar iniciativas inovadoras na área da produção de bens transaccionáveis". Na verdade, esse ano e os que se seguiram foram pródigos em manifestos. Muitos desses 51 assinariam depois o Manifesto dos 74, a apelar a que se reestruturasse a dívida pública. Estranhamente, nos últimos quatro anos, entre ver os seus ordenados repostos ou fortalecer o investimento público – que está em valores mínimos das últimas décadas –, preferiram a reposição salarial.
Mesmo quem não se lembra dos manifestos, lembrar-se-á de como João Cravinho usava o mesmo argumento para defender as SCUT, as auto-estradas sem custos para o utilizador. Também elas iam gerar milhares de empregos e estimular a actividade económica e com isso gerar tantas receitas fiscais que iam trazer excedentes orçamentais. Não vale a pena detalhar o quão errado estava João Cravinho. Apenas acrescento que, se já era arriscado contar com o ovo no cu da galinha no virar do século, quando a dívida pública andava nos 60% do PIB, ainda mais arriscado será apostar num aumento da dívida agora, quando é o dobro.
O segundo problema não é tão óbvio, mas é mais grave. Prende-se com a actividade de Paul De Grauwe enquanto académico, apresentado pelo PÚBLICO, repito, como “um dos maiores especialistas mundiais” em política monetária. O seu artigo académico com mais citações [1] é um que tem como título “Self-fulfilling crises in the Eurozone: An empirical test” e que foi publicado em 2013, no Journal of International Money and Finance. Nesse artigo, Paul De Grauwe analisa os dados da crise da zona euro e conclui que, em 2010-11, as taxas de juro dispararam nos países periféricos por causa de profecias auto-realizáveis.
Peço desculpa pelo palavrão, mas explico. O que isto quer dizer é que se os mercados acreditassem que Portugal não precisava de reestruturar a dívida, as taxas de juro não subiriam. Sendo assim, o custo da dívida também não aumentaria, pelo que Portugal conseguiria ir pagando sem problemas. Já se os mercados não acreditassem que Portugal tivesse condições para pagar a dívida, então exigiriam taxas de juro maiores, fazendo com que o custo da dívida aumentasse. Com esse aumento, o pagamento seria incomportável e, portanto, a reestruturação da dívida (eufemismo para incumprimento parcial da dívida) seria inevitável.
Explico novamente. Portugal (bem como Espanha e Irlanda) estava numa situação em que, quaisquer que fossem as expectativas dos mercados, elas concretizar-se-iam. Se desconfiassem de Portugal, as taxas de juro subiriam e não conseguiríamos pagar a dívida. Se confiassem, as taxas de juro não subiam e conseguiríamos ir pagando – mais ou menos como estamos a fazer agora. Ou seja, estávamos totalmente dependentes dos humores dos mercados. Qualquer abanão externo podia gerar uma crise. Mas De Grauwe vai mais longe e descreve alguns dos determinantes dessa fragilidade financeira. Basicamente, quanto maior for o nível de dívida pública e quanto maior o endividamento externo, mais expostos aos humores dos mercados estaremos. Adicionalmente, diz-nos que estar no Euro aumenta os riscos.
Não posso por isso deixar de ficar espantado quando, na entrevista ao PÚBLICO, nos vem dizer que estarmos preocupados com a dívida pública é um dogma sem qualquer fundamento. Claramente, o Paul De Grauwe do Conselho das Finanças Públicas não é o Paul De Grauwe académico, o tal que, diz o PÚBLICO, é um dos “maiores especialistas mundiais” nestes assuntos.
O especialista teria sido cauteloso na entrevista e teria dito que os seus trabalhos académicos mostram que as condições que nos puseram à mercê dos mercados em 2010/2011 estão neste momento agravadas. A saber: continuamos no Euro; continuamos com um nível absurdamente alto de endividamento externo (mais de 100% do PIB); e a dívida pública aumentou de 84% do PIB em 2009 para 120% em 2018.
Da próxima vez que o PÚBLICO entrevistar Paul De Grauwe, sugiro que lhe pergunte em que qualidade é que está a responder: se na de académico respeitado, com algum trabalho de referência no assunto, ou se na de polemista. De caminho, peçam-lhe para esclarecer qual das duas versões de Paul de Grauwe tem assento no Conselho das Finanças Públicas de Portugal. Depois apresentem-no tendo isso em consideração.
[1] 159 citações de acordo com a Scopus. A Scopus é uma base de dados bibliográfica muito usada para avaliar a qualidade e o impacto da produção académica. É, por exemplo, a base bibliográfica usada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia quando avalia os centros de investigação.