Carlos Conceição em Berlim fala da aventura de Serpentário

Na sua primeira longa-metragem, estreada no festival alemão, o realizador português convida o espectador à viagem por uma Angola imaginada, alimentada das suas próprias experiências.

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Serpentário de Carlos Conceição dr
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jean-christophe husson

Carlos Conceição pede desculpa: é a sua primeira vez com um filme na Berlinale, o interesse suscitado por Serpentário gerou um ritmo de entrevistas inesperado (“só ontem foram 15!”). E receia que a conversa com o PÚBLICO, no bar do hotel Grand Hyatt de Berlim, junto ao centro de imprensa do festival, sofra com o cansaço — “não estou nos meus melhores dias, não sei se as minhas ideias fluem devidamente”, sorri. A conversa prova exactamente o contrário: o realizador de Coelho Mau Boa Noite, Cinderela tinha uma noção extremamente precisa do que queria fazer nesta primeira longa-metragem, “decantada” ao longo de quatro anos até à estreia mundial na secção paralela Forum.

E o que é Serpentário? É um road movie sem estrada (“gosto dessa definição”, ri-se o realizador), em que um viajante (João Arrais) embarca numa aventura pelos territórios onde a sua mãe morou — e onde o seu espírito pode ainda estar presente. Uma espécie de viagem interior para exorcizar ou apaziguar fantasmas, à sombra de Antonioni: Conceição evoca, durante a conversa, Profissão: Repórter Zabriskie Point como fulcrais para a construção de Serpentário. “São filmes que me fazem repensar os tempos do cinema. Num filme como este o plano não tem uma função informativa; há uma questão de ritmo, de viagem, de sensação física que tem de ser comunicada — e as pessoas têm de ficar cansadas também...”

O cartão de abertura, onde Conceição evoca a sua relação com a sua mãe, que mora em Angola e é a sua “maior fã”, sugere uma dimensão autobiográfica — aliás, Serpentário, que foi rodado em Angola com a própria mãe do realizador como elemento fulcral da equipa de filmagens, surgiu de uma conversa telefónica. “Ela estava a pensar em ter uma arara, mas tinha algum receio que a arara vivesse mais do que ela, porque são animais com uma esperança de vida muito longa, e perguntou-me se eu tomaria conta do animal quando ela morresse,” explica.

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Serpentário

O episódio está presente no filme e, segundo Conceição, “foi um veículo”: “Eu já tinha ideia de fazer um filme muito minimal — que vem da minha busca incessante de filmes que eu possa fazer, de encontrar uma forma de fazer um filme que só pudesse ser feito daquela maneira e que pudesse ser feito por uma só pessoa. E cheguei à conclusão de que teria de ter que ver com Angola e com a minha sensação de não-pertença.”

Em Serpentário, as paisagens de Angola, entre as ruínas do colonialismo e as tribos rurais, funcionam como ideal de pertença e território por explorar — nas palavras do realizador, trata-se de “reimaginar um espaço, não só geográfico mas emocional. E por ser um filme sobre um território emocional só se podia articular mesmo sobre esse tipo de perspectiva mais interior, mais onírica, pelo menos na minha experiência”.

Essa necessidade de pertencer explica-se pelo seu estatuto “entre mundos” — nascido em Angola quatro anos depois da revolução, Conceição veio muito cedo para Portugal, antes de regressar por três anos e voltar para a Europa para cursar cinema. “Havia um convite permanente para que eu não me sentisse angolano, e era um bocado difícil perceber as coisas dessa forma, qual era o nosso lugar num país que estava a reinventar-se. A minha adolescência propriamente dita passei-a em Braga, e quando voltei a Angola, dos 18 aos 21 anos, os meus colegas da escola primária tinham criado uma ligação cultural, afectiva, com o país. E eu era bracarense. A adolescência solidifica e concretiza estas ligações telúricas mesmo que elas não existam antes, e isso prolongou a minha sensação de desajuste. Aliás, a opção de pôr o João Arrais a fazer este papel tem que ver com essa tentativa de observação de um eu de um determinado período, como se estivesse a observar do futuro o meu eu passado.”

Mas não há nada de nostalgia em Serpentário, nem uma procura de um qualquer éden perdido. Antes pelo contrário. “Eu não tenho o tipo de nostalgia colonialista! Aquela personagem está a atravessar um território que talvez gostasse de ter conhecido noutras condições. Como se fosse uma aventura que, na verdade, não o é.”

 
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