As guardiãs do bordado de crivo

Bordados há muitos pelo país fora, mas a freguesia barcelense de São Miguel da Carreira é o coração de uma técnica recentemente certificada. Principal ocupação daquela terra em boa parte do século XX, o bordado de crivo não é hoje tão procurado. Há, no entanto, quem ainda borde do princípio ao fim.

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“Primeiro, riscamos com um lápis o desenho que queremos”, diz Glória de Jesus, mostrando um esboço de uma peça bordada num pano de linho. Numa das divisões de sua casa, bordados com desenhos de flores, temas religiosos ou até astronómicos – uma amostra das fases da Lua – revestem as paredes. Os tipos de pontos são vários. “Tem o bordado cheio, o de bainhas abertas, o richelieu, por exemplo. Eu sei fazer todos esses, mas não são característicos daqui”, salienta. Em muito do que ali está exposto, vê-se uma espécie de rede de linho. É o bordado de crivo de São Miguel da Carreira, uma freguesia do concelho de Barcelos, localizada na confluência com os municípios de Famalicão e de Braga.

No passado dia 24 de Janeiro, o crivo recebeu a certificação de produto artesanal pela ADERE-Certifica, organismo creditado pelo Instituto Português da Acreditação. Este bordado atravessou o quotidiano de várias gerações em Carreira, e Glória não foi excepção. “Aprendi a ver a minha mãe e as minhas tias. E a minha irmã mais velha exigia que eu fizesse serão à noite, com cinco ou seis anos. Tinha de tirar uns fios que ela me marcava”, recorda a artesã, hoje com 64 anos. De uns simples fios, a bordadeira começou mais tarde a elaborar trabalhos completos – o primeiro foi uma peça para tabuleiro de chá – e a aumentar a complexidade das suas obras até produzir uma toalha de crivo, com oito metros e meio de comprimento, hoje numa quinta de Vialonga, em Vila Franca de Xira. 

Esse caminho pouco teve de solitário, no entanto. As memórias de há 50 anos ainda guardam multidões de 50 ou 60 pessoas a trabalharem juntas no Verão, à sombra das ramadas de uvas ou dos cobertos erguidos sob os portões das casas. “Estávamos ali todos, cada um com um banco pequenino, a trabalhar no colo. Contavam-se anedotas. Cantava-se. As pessoas eram felizes, mesmo com menos dinheiro”, recorda.

Décadas depois, Glória reside em Cambeses, a três quilómetros da freguesia natal, mas o crivo, esse bordado de “muita precisão” que pode ficar estragado ao mínimo erro, ainda é uma extensão de si própria. A criação integral de qualquer peça está sujeita a dez fases, explica. Depois de se fazer o desenho, é preciso alinhavar os locais onde o bordado vai ter relevo, fazer o cordão exterior, com o denominado ponto caseado, marcar os sítios onde vai estar o crivo e tirar os fios necessários para depois os bordar, prossegue. Depois de se fazer o cordão interior – serrilha -, já se pode lavar, passar a ferro e recortar a peça, conclui. “A mesma peça passa dez vezes pela mão. Todos os bordados de crivo seguem esse processo”.

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Apesar de muita gente na zona ainda desempenhar algumas tarefas associadas ao crivo, Glória de Jesus é das poucas artesãs que ainda faz peças do princípio ao fim. Em Carreira, Maria Ermelinda Rodrigues e Elisabete Dias, mãe e filha, dominam todo o processo criativo. “Fiz isto toda a vida. Diziam-me que a gente, com três ou quatro anos, já tirava fio e aprendia. Hoje tenho 71 anos. Há quantos anos isto não vai”, diz Maria Ermelinda, enquanto borda, sobre uma almofada, lado a lado com a filha.

Da infância, recorda-se que quase toda a gente da freguesia, nomeadamente as mulheres, trabalhava nos bordados e que a sua mãe, Ana Gomes de Araújo, ajudou a dinamizar o crivo durante o século XX, tendo inclusive levado peças de artesanato a feiras em Barcelos, em Lisboa e no Porto, no Palácio de Cristal, antes da demolição, em 1951. “A minha mãe chegou a ter 178 mulheres a trabalhar para nós”, revela.

Na altura, Carreira dedicava-se por inteiro ao bordado de crivo, já que a procura era grande e qualquer pessoa que passasse pela freguesia saía de lá com alguma peça, explica Elisabete. A necessidade de aumentar então a produção levou muita gente a especializar-se em determinadas etapas, o que ajuda a explicar a falta de pessoas que conheçam hoje todo o processo. “Para se marcar, por exemplo, é preciso ver muito bem, e mulheres com 70 ou 80 anos vêm-me pedir para o fazer. Eu faço e elas continuam depois o trabalho. Noutras vezes, pedem-nos para lavar e passar a ferro”, indica a artesã, de 40 anos.

Uma tradição a pedir valorização

Mas há quanto tempo se borda em crivo em São Miguel da Carreira? Antes desta tradição ser certificada com origem naquela freguesia barcelense, também Guimarães a quis certificar, revela Elisabete Dias. No entanto, provou-se que a autora de uma peça com cerca de 70 anos que está na cidade berço, Ermelinda Leitão, viveu em São Miguel da Carreira. “É uma prova evidente de que o crivo é daqui. Ainda se guardam aqui peças com mais de 100 anos”, reitera a bordadeira.

O vereador da Câmara de Barcelos envolvido na certificação, José Beleza, adiantou ao PÚBLICO que os mais antigos bordados de crivo remontam, pelo menos, a 1886 e que o seu processo de criação é distinto de outros bordados já certificados, como o de Guimarães e o de Viana do Castelo. “Os bordados têm todos alguma relação entre si, mas o caminho histórico do bordado de crivo é diferente de qualquer outro”, explicou o responsável pelos pelouros do artesanato e do turismo.

Depois de ter iniciado o processo de certificação em 2015 e de ter visto o caderno de encargos ser aprovado pelo Registo Nacional de Produções Artesanais Tradicionais Certificadas, em 29 de Junho de 2018, o político adiantou que o principal objectivo, a partir de agora, é acrescentar valor ao bordado de crivo, numa fase em que Barcelos já é Cidade Criativa da UNESCO para as artes e ofícios tradicionais. “Com a certificação, queremos assegurar a qualidade do produto a quem compra, a diferenciação face a outros bordados e encontrar novos mercados para o crivo”, projectou.

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Para quem mantém viva a tradição, é mesmo de valorização que ela precisa. As receitas de Glória de Jesus provêm dos clientes e das idas à feira de artesanato, mas são muito menos àqueles que hoje procuram artigos em bordado de crivo, face ao que acontecia há 20 anos. “Vendo alguns trabalhos, mas agora muito menos. Em 98, começou a sentir-se uma quebra, ainda para mais com a ideia de que os bordados não se usavam”, explica.

Ultimamente, os clientes têm-lhe pedido para fazer cortinados, toalhas de baptismo, toalhas de altar e até presépios semelhantes ao que repousa sobre uma das cómodas de casa, mas o proveito que daí retira é, no seu entender, muito pouco. “Com um bocadinho daqui e um bocadinho dali, vai-se juntando o bolo todo, mas sempre com muito custo. Isto teria de ter mesmo muito nome, como uma pintura, para o trabalho que isto dá compensar”, afirma.

Quando tem pela frente várias obras em simultâneo, Glória prefere concentrar-se naquelas que tem de entregar primeiro, mas o trabalho diário é sempre muito, restando apenas tempo para cuidar dos afazeres de casa. “Ainda me vou aguentando diariamente até à meia-noite. Ao fim do dia, são milhares de vezes a ir com o braço ao ar. Eu sei ouvir televisão, mas não sei ver”, afirma, lamentando as tendinites que contrai de quando em vez.

Na casa de Maria Ermelinda, o bordado de crivo aguenta-se várias vezes na rotina diária até às 00:00 ou às 01:00, apesar da procura dos clientes variar consoante a altura do ano. “Há meses em que não tenho nada e outros em que há muito trabalho. Para a Páscoa, já tenho encomendas que eu não sei se vou acabar”, admite Elisabete Dias. A artesã depara-se hoje com uma menor procura do que há 10 anos, mas os clientes de hoje sabem melhor o que querem. “O nosso público não tem nada a ver com o do passado. Quando uma pessoa quer uma toalha, quer o cunho dela. É algo mais específico. Antigamente era quase uma criação de artigos em série”, explica.

“Eu queria uma escolinha”

Além de bordar para os clientes, Elisabete Dias dá também aulas. Já orientou dois cursos de bordados do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), com cerca de 15 pessoas por turma, e está disponível para ensinar em casa. A artesã reconhece que o ensino pode até não garantir empregos no imediato, mas pode ajudar as pessoas a “darem mais valor” ao trabalho por detrás do bordado de crivo. “Se as pessoas souberem como é feito, não se importam de pagar 10, 20 ou 30 euros por peça, porque sabem que dá trabalho”, aponta.

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Glória de Jesus não viveu até agora a mesma experiência, apesar de já ter sido convidada para ensinar bordados em Barcelos, através do IEFP, mas também em Lisboa e em Estremoz. Mesmo não tendo aceitado, a artesã gostaria de assistir ao nascimento de uma escola de bordados que assegure a sobrevivência da uma tradição que vive não do dinheiro, mas da paixão. “O crivo é uma paixão. Sem paixão, não adianta. Eu queria que, em Barcelos, se fizesse uma escolinha. Aí, eu ia ensinar, porque não queria que isto realmente acabasse”, reitera.

Um dos objectivos da certificação, explicou José Beleza, é fazer com que alguns jovens olhem para o bordado de crivo como a sua “ocupação principal”. Glória de Jesus espera que sim, pois o “verdadeiro artesanato” deve persistir. “Isto resume-se a uma almofada, uma agulha, a uma tesoura, às mãos e à mente a trabalhar. Com as linhas e o linho. Nada mais”.

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