O passado é o presente de Jorge Jácome e Denis Côté
Entre os filmes do português e do canadiano, ambos a concurso na Berlinale 2019, não há muito em comum – mas Past Perfect e Répertoire des villes disparues têm tudo a ver um com o outro.
Past Perfect é uma curta-metragem caseirinha, 23 minutos de duração, inspirada por uma peça de Pedro Penim, do Teatro Praga, que o próprio Jorge Jácome, em conversa com o PÚBLICO antes de Berlim, admitia não ter exactamente começado por ser um filme. Répertoire des villes disparues é uma longa-metragem de produção profissional, 96 minutos, baseada num livro de Laurence Olivier e realizada por um cineasta canadiano que tem aqui a sua terceira presença a concurso em Berlim, Denis Côté. Nada os une e, contudo, têm tudo em comum. Ambos evocam a persistência da memória nas nossas vidas, nos espaços em que vivemos; ambos são filmes de fantasmas que nos assombram o quotidiano, contos de um apocalipse possível ou anunciado.
Em Past Perfect (a concurso na secção Berlinale Shorts), a arqueologia da cultura pop funciona como ponto de partida para questionar a noção de saudade, de passado, de melancolia – 2018 foi apenas no ano passado e contudo parece ter já sido há tanto tempo, diz-se às tantas. Sobre imagens que parecem resgatadas a um arquivo morto, com a sua cor de época e as suas distorções de luz e cor, pontuam-se uma série de regressos ao passado, cada vez mais lá para trás; a ausência de contexto e o valor facial dos objectos e das memórias (ai aquele fidget spinner…) abrem espaço para toda uma construção de narrativas que já não são factualmente históricas, antes leituras possíveis. Pequena jóia prismática de grande inteligência formal, Past Perfect projecta a narrativa conceptual de Flores, o filme anterior de Jorge Jácome, para uma área criativa completamente diferente.
Répertoire des villes disparues (Competição) não fala do futuro – passa-se num presente muito específico –, mas podia passar-se num pós-apocalipse, decorrendo numa aldeia de apenas 215 habitantes no Quebeque, Irénée-les-Neiges. “Resolvemos os nossos problemas entre nós, somos uma comunidade”, proclama a presidente da câmara. E o problema em causa é a morte de um dos seus jovens, Simon, 21 anos, num acidente de automóvel que tem tudo de suicídio – essa morte virá afectar Irénée-les-Neiges de modo banalmente sobrenatural, acordando os fantasmas pessoais dos habitantes mas também os fantasmas que pairam pela aldeia remota. É como se a morte de Simon abrisse uma válvula de escape por onde a tensão de viver longe de tudo, numa comunidade onde todos se conhecem, finalmente se libertasse, e aquilo que estava reprimido se escancarasse – perante o olhar dos fantasmas que observam os seus descendentes, sem julgar nem condenar.
Podia ser o filme de género de Denis Côté, a sua contribuição para o actual bom momento dos filmes de terror; podia ser a sua versão do Futuro Radioso (que continua a ser o nosso preferido do também canadiano Atom Egoyan, e parte de uma premissa semelhante), e deixa a milhas o Tom na Quinta do poseur Xavier Dolan; podia ser também uma das suas subversões do cinema de género (como Vic e Flo Viram um Urso, com que se estreou em 2013 na competição da Berlinale, onde venceu o prémio Alfred Bauer). Não é nada disso: Répertoire des villes disparues é o filme mais narrativamente clássico, mais sóbrio, mais linear da obra do canadiano, rodado num áspero 16mm quase monocromático, mas inscreve-se na perfeição no seu olhar permanente sobre a ideia de comunidade. E é também, para nós, a mais conseguida das suas ficções, capaz de evocar uma atmosfera sem se perder nela e de nela colocar personagens que respiram o mesmo ar que nós. É, para já, o nosso filme preferido da competição de Berlim.