Advogada e cigana, um rosto do princípio da mudança
Uma família cigana de Torre de Moncorvo tem uma filha licenciada em Direito. “Estamos no meio do fogo cruzado. Para os não ciganos somos ciganos e para os ciganos não somos bem ciganos”, diz a mãe.
Era Alcina Jacinto Faneca uma garota e já dizia que queria estudar Direito. Sonhava com uma “justiça imparcial”, daquelas que não olham à pertença étnica, ao género, ao credo ou à orientação sexual. Agora, que tem 25 anos e é advogada estagiária, percebe que o preconceito é um mal difícil de erradicar até dentro dos tribunais, mas nem por isso exclui a possibilidade de se candidatar ao Centro de Estudos Judiciários e de se tornar juíza.
Uma cigana juíza é coisa que nunca viu nem sabe se existe em Portugal — pode haver na “clandestinidade étnica”, para usar a expressão de Bruno Gonçalves, vice-presidente da associação Letras Nómadas; ciganos e ciganas a exercer advocacia sem esconder que são ciganos ou ciganas, sim; o pai de Alcina tem uma prima que é advogada e um primo que é guarda prisional.
Não é por se ter unido a um futuro guarda nacional republicano e por estar gravidíssima que Alcina vai apagar os seus sonhos. Já imagina a felicidade que sentirá, um dia, ao ouvir a filha de ambos, Vera, gabar-se: “A minha mãe faz isto, a minha mãe faz aquilo. Ela é isto, ela é aquilo, ela conseguiu.”
O estereótipo do cigano filho do vento e das estrelas, que anda de terra em terra, a vender cavalos, atoalhados ou tapetes e a ler o futuro nas palmas das mãos dos outros, estoura quando se entra na casa grande e confortável da família Faneca, na aldeia do Carvalhal, a poucos quilómetros do centro de Torre de Moncorvo, no distrito de Bragança. O pai, António, tem 52 anos, gere uma empresa de prestação de serviços agrícolas e presta-os em Espanha. E a mãe, Alcina, dois anos mais nova, ocupa-se da família.
A família é grande e aprecia a educação, na qual inclui aspectos da cultura cigana como o respeito pelos mais velhos, o ideal de “pureza” feminina, a centralidade do casamento, o valor da ajuda mútua, o hábito de lembrar os mortos. Respeita os usos e costumes “dentro do razoável”, no qual não inclui, por exemplo, práticas como o abandono escolar e o casamento precoce.
Só Teresa, a filha mais velha, de 28 anos, deixou a escola cedo. Os ataques de epilepsia amedrontavam-na. Não se sentia bem desacompanhada. Alcina, de 25 anos, completou a licenciatura em Direito e o mestrado em Direito Criminal. Ana, de 23, está a seguir as suas pisadas. E António, de 14, já falou em estudar Medicina, mas agora fala em estudar Direito, como as irmãs, fazendo menção a uma eventual carreira de investigador da Polícia Judiciária.
Fogo cruzado
Senta-se mais gente à volta da mesa de madeira que domina a cozinha da família. Os pais de Alcina acolheram uma sobrinha, de nove anos, cujos pais passam parte do ano a trabalhar em Espanha e a deixam com os tios para que estude sem sobressalto. E dois sobrinhos órfãos — um tem 21 anos e é guarda da GNR noutra terra, o outro tem 17 e frequenta o ensino secundário.
Os primos chegam da escola à hora do lanche. “Se entrar na GNR já é uma coisa boa, mas quero ser mais do que guarda da GNR, estou a pensar na Academia Militar”, diz o rapaz. “Se não fosse o meu tio, não tinha comida na mesa, não podia pensar em estudar. É ele que me está sempre a dizer: ´Tens de ser mais ambicioso.´" A avó materna, que também vive ali, comove-se ao ouvi-lo.
A avó conta agora 66 anos e nunca frequentou a escola. Aprendeu a ler e a escrever com um casal de professores com quem chegou a trabalhar. Não é cigana. Quando se casou, aos 14 anos, “converteu-se” à cultura cigana — “aciganou-se”, como se costuma dizer. “O cigano com quem me juntei nessa altura já era um bocadinho diferente. Relacionava-se com ciganos e não-ciganos.”
Observa-se nesta família cigana o mesmo processo de progressão de escolaridade que em milhares de famílias não-ciganas pelo país fora. O pai fez a 4.ª classe, o que lhe permitiu tirar a carta e desenvolver o seu negócio, e a mãe o 6.º ano, que não os impede de ter outras aspirações para os filhos. “Podiam andar cheios e anéis e pulseiras, mas preferem investir em nós”, resume Alcina.
Não é fácil. “Estamos num fogo cruzado”, suspira a mãe. A escola é uma realidade recente na história dos ciganos portugueses. Durante séculos, só lhes fazia falta saber fazer contas. E, ainda hoje, a virgindade das raparigas é um ponto de honra.
O Estudo Nacional Sobre as Comunidades Ciganas — feito por Maria Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias e editado pelo Alto Comissariado para as Migrações em 2014 — aponta para uma parcela de 2,9% de escolaridade de nível secundário ou superior. A taxa de analfabetismo é de 15,5%. Quase um terço não completou o 1.º ciclo ou não frequentou a escola.
O Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017, revela mudança. A larga maioria das crianças já frequenta o pré-escolar. O 1.º ciclo é uma aposta ganha. Há uma quebra do 1.º para o 2.º ciclo. E um fosso do 2.º para o 3.º ciclo. A frequência escolar vai encolhendo à medida que as crianças se vão aproximando da adolescência.
Questionados sobre o porquê de os filhos ou netos terem abandonado a escola antes de concluir a escolaridade obrigatória, os adultos que fizeram parte do estudo nacional tendiam a dar duas respostas: ou eles já tinham “aprendido o necessário” ou eles tinham assumido um compromisso — “estavam noiva/os, casada/os, grávidas ou tinham sido recentemente mães/pais”.
Outros estudos de Maria Manuela Mendes e Olga Magano aprofundam esse desencontro. Faltam, por exemplo, “expectativas em relação à escola” (amiúde reforçada pelo facto de não conhecerem pessoas ciganas que tenham concluído o 9.º ou o 12.º ano ou até mesmo frequentado o ensino superior). E faltam “impactos da escolarização na vida profissional”.
Em qualquer caso, as raparigas sofrem mais pressão para abandonar a escola precocemente do que os rapazes: as turmas são mistas e muitos pais não gostam que, já adolescentes, elas possam conviver, sem supervisão familiar, com rapazes que não conhecem ou em quem não confiavam.
Trezentos quilómetros
Quando Alcina entrou na Universidade Católica do Porto, em 2012, os pais ouviram palpites, reparos, reprovações de ciganos das suas relações. Iam deixar a filha ficar sozinha, de segunda a sexta-feira, numa cidade, a mais de 300 quilómetros de distância? Ia perder-se. Ia engravidar. Ia trazer a desonra para a família inteira. Volvidos dois anos, avançou a irmã mais nova para a mesma universidade e para o mesmo curso. O coro de críticas continuou.
O pai não pedia às filhas que tivessem juízo. O pai pedia à mãe que lhes pedisse que tivessem juízo. E a mãe pedia-lhes com variações desta frase: “Ou vós vos portais bem e fazeis as coisas que têm a fazer ou a mártir sou eu.”
A mãe sabe o que é crescer com a pressão do olhar dos outros. Não lhe bastava ser impoluta, também tinha de parecê-lo. “Quando era nova até andava assustada. Se o meu pai fosse a Torre de Moncorvo e me visse a tomar um café com um rapaz, já era uma guerra lá em casa. Hoje, o meu marido vai a Torre de Moncorvo e vê as filhas a tomar café com um colega e é normal.”
Teve tempo para perceber a irracionalidade da dupla moral que não só levava muitas famílias a impedirem raparigas de concluir a escolaridade obrigatória, mas também a limitar muitas mulheres a actividades profissionais que são uma extensão da esfera doméstica, como a venda ambulante de porta em porta, nas feiras e nos mercados ou as campanhas agrícolas. “Há ciganas que se casam com 15 anos e aos 16 já deixaram o marido!”
Alcina já não sentiu essa pressão que a mãe recorda. “O meu pai sabia que eu tinha um colega de faculdade e que fazia trabalhos de grupo.” E a atitude dele manteve-se quando iniciou a vida profissional. Já a fazer estágio, ia com o patrono para Coimbra, para Lisboa, para onde fosse. “Para os ciganos, isto era uma coisa impensável…”
“Estamos num fogo cruzado”, repete a mãe. Cabe-lhe, em cada instante, encontrar a posição segura. Por exemplo: as filhas dos não-ciganos, geralmente, podem namorar e sair à noite; as filhas dos ciganos, geralmente, não podem namorar nem sair à noite. Decidiu deixá-las sair. “Em vez de virem para casa às 11 ou à meia-noite, às vezes queriam ficar até às quatro ou às cinco da manhã e eu não deixava”, recorda. “Quando estava a começar o DJ, tínhamos de vir para casa”, ri-se Alcina.
“Sabes quem me escreveu?”
Em Janeiro de 2018, Alcina apareceu numa grande reportagem de Victor Bandarra na TVI. O agora marido viu a peça, encontrou-a no Facebook e mandou-lhe uma mensagem a dar-lhe os parabéns. Primeiro, Alcina não respondeu. Depois, viu-o no Facebook, em directo, a tocar guitarra e a cantar e deu-lhe os parabéns também. Contou logo à mãe. “Sabes quem me escreveu?” Ele já estivera ali em casa havia muitos anos, com um tio, o conhecido músico cigano José Lito Maia, a animar uma festa da família.
A troca de mensagens continuou nos dias seguintes. Ao notar o entusiasmo, a mãe pediu-lhe que parasse. A rapariga ainda nem tinha feito o exame de acesso à Ordem dos Advogados. “Todo o dinheiro que eu empreguei na educação dela, toda a ilusão que eu tive, agora vai tudo pela água abaixo”, temeu. “Não a vão deixar exercer ou vão andar sempre atrás dela. Vai ter de levar guarda-costas quando for falar com um cliente. Isso não é vida para ela. Ela não está habituada a isso.”
A mãe não conhecia o rapaz, nem a família. Temia que fossem ciganos à moda antiga. O supracitado estado nacional mostra que ainda há muitos a pensar que “mulheres de vergonha” não devem frequentar determinados sítios sem a presença do marido, nem atrever-se a discutir assuntos familiares com o marido.
Alcina compreendia-a. “Ela tinha medo que eu tivesse de escolher entre ele e a minha vida profissional, mas eu sem a minha vida profissional não sou eu.” E explicava-lhe: “Ele é diferente.” Ele vira na reportagem que ela era advogada estagiária. Se tivesse alguma coisa contra, não a teria procurado. E a mãe levantava novas dúvidas. E se ele agora dizia que não se importava e depois a proibia de exercer?
Um mês e tal depois de terem trocado as primeiras mensagens, encontraram-se em Coimbra para se olharem olhos nos olhos, conversarem frente a frente, tomarem um café. Volvido outro mês e tal, “fugiram”.
“Fugir”, na cultura cigana, é consumar a união para forçar a família a aceitá-la. Ela deslocou-se de Torre de Moncorvo e ele de Portalegre para o Porto. “Poupamos o dinheiro de uma festa”, ri-se Alcina. Não queria esquivar-se às perguntas da mãe, disfarçar, mentir. Nem enfrentar o pai. “Não tinha coragem e outra forma. Levaram um choque e depois ficou tudo bem.”
Do Porto foram para casa da família do noivo, em Portalegre, levando a prova de virgindade, o lenço manchado de sangue. A família dela juntou-se à família dele para celebrar a união da advogada estagiária e do futuro GNR.
Os pais gostaram do que viram. “Perceberam que não havia aquela questão de me proibirem de fazer alguma coisa, de me anularem enquanto profissional, enquanto pessoa”, lembra Alcina. “Dá para conciliar tudo quando se tem uma pessoa que percebe que cada um tem o seu espaço.” O olhar da mãe ilumina-se ao ouvi-la. “Ela teve sorte. Ela encontrou um homem com a mentalidade dela.”
“Espectáculo!”
O marido de Alcina não se sente visto de lado por se ter casado com uma mulher decidida a fazer carreira de advogada ou juíza. “Pelo contrário.” Quando diz o que a mulher faz, o mais comum é responderem-lhe: “Espectáculo!” Não sabe se haverá zunzum nas suas costas. “Olha, andou na escola até tarde.” Não se importa. “Sempre estive seguro da pessoa que ela é e nunca pensei que tivesse tomado maus caminhos.”
Desde criança que ele se imagina a vestir a farda da GNR. Há um Centro de Formação em Portalegre. Ele via os recrutas por ali e imaginava-se um deles. “Nunca tive expectativa de tirar uma licenciatura. Sempre foi chegar a ter a minha idade, ter o 12.º ano, fazer o serviço militar e entrar numa força policial. Inscrevi-me na GNR e na PSP. A GNR apressou-se.”
O marido de Alcina prefere que a sua cara não apareça nas páginas de um jornal. Por motivos profissionais, prefere manter a tal “clandestinidade étnica”. E a sogra compreende-o. “Não escondemos que somos ciganos, mas não podemos apresentar isso como cartão-de-visita. As pessoas têm de nos conhecer primeiro.”
Como alterar as imagens seculares que bloqueiam a compreensão e perturbam a comunicação entre ciganos e não ciganos? “Através do diálogo positivo; através da interacção nas mais diversas esferas da sociedade: na escola, no trabalho, nos espaços públicos”, responde Maria José Casa-Nova, investigadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Minho. “É fundamental ter curiosidade positiva, querer conhecer sem ideias concebidas a priori. E, para isso, importa haver uma aceitação recíproca. Sem medos e desconfianças. Este é um trabalho de todos/as.”
Há muita coisa a despontar. “Para quem, como eu, faz investigação e trabalha com população portuguesa cigana desde 1991, é ainda pouco, mas sente-se que a sociedade portuguesa está com outra dinâmica, que ‘acordou’”, comenta. “Muitos municípios estão finalmente a trabalhar em conjunto com a população cigana no sentido de se conseguir condições materiais de existência que permitam viver com dignidade, a par da construção de relações interculturais; muitas organizações não governamentais estão com um papel muito mais activo neste trabalho conjunto; é com este trabalho em parceria, em igualdade, que se constroem sociedades onde os seres humanos se vão tornando mais humanos.” Nada custa mais a mudar do que a mentalidade. “A par das políticas públicas, cada um e cada uma tem de fazer um trabalho sobre si próprio/a; de análise sobre como se posiciona face a todos os outros, dos juízos de valor que formula, das resistências que cria e porquê.”
Dar a cara
Alcina já se sente preparada para ser um rosto de mudança. Entende que dar a cara mostra que é possível ser cigana, respeitar as tradições e estudar, conciliar a vida pessoal, a vida familiar e a vida profissional, como fazem milhões de não-ciganas.
Esta é a mensagem que quer passar: “Acho importante os pais perceberem que não é por estarem a estudar que as filhas se vão portar mal. Se elas quiserem prosseguir um objectivo de vida diferente, deixem-nas segui-lo. É importante uma mulher ter a sua Independência e viver disso mesmo.”
A aposta dos pais está ganha. “Não gosto de me gabar mas soube educar bem as minhas filhas”, diz a mãe. Alcina não tinha de prestar prova de virgindade, escolheu fazê-lo. “Crescemos a ver isso”, diz. Teresa, a mais velha, também não tinha e essa fê-lo à moda mais tradicional, isto é, o hímen nem foi rasgado pelo marido dela, que trabalha com o pai dela, mas por uma mulher mais velha, com um dedo e um lenço branco. Tinha 26 anos. “Para muitos ciganos já era uma velha, ou já se tinha portado mal, já não se casava”, comenta a mãe. “Não foi por andar na escola e por sair para tomar um café que não se guardou.”
Moral da história? “Estamos no meio do fogo cruzado”, repete de novo a mãe. “Para os não-ciganos somos ciganos e para os ciganos não somos bem ciganos.” “Às vezes até fico cansada. Queria ser ou não ser. Sinto-me dos dois lados. Às vezes, é difícil lidar com isso.” Quantos sentirão o mesmo?