No inter-rail das memórias
Carlos Conceição vai à procura da África que tem na cabeça em Serpentário, enquanto Frank Beauvais usa 400 filmes para contar seis meses de vida
Às tantas, lembramo-nos de uma coisa que Leonardo di Caprio dizia quando fazia de mercenário sul-africano em Diamante de Sangue: “this is Africa” - isto é África, as regras normais do ocidente não se aplicam aqui. Talvez seja por isso que Serpentário (Forum), a primeira longa do português Carlos Conceição, seja um filme onde as regras normais não se aplicam. Há um ponto de partida semi-auto-biográfico – a relação do realizador com a sua mãe que decidiu continuar a viver em Angola, e as visitas anuais que lhe faz – mas a partir daí entramos em território frágil, onírico, onde uma mini-história burlesca da colonização portuguesa e sonhos de futuros omniscientes coexistem com uma busca por algo que já não existe. No filme, a figura da mãe existe apenas como voz, espécie de sereia cujo canto atrai e hipnotiza o viajante que lhe está no centro (João Arrais); a sua viagem não é tanto por uma África real como por uma África sonhada, imaginada, terra de desafios e desilusões, de passados enterrados e futuros por revelar. Uma aventura de adolescência sôfrega mas também atenta, onde a paisagem é uma personagem ao mesmo nível do actor.
De certo modo, é como se Carlos Conceição tivesse imbuído Serpentário das suas vivências de “inter-rail africano” e deixasse a câmara transformá-las por magia. É um filme de procura – da mãe, de si próprio, do mundo lá fora – e um objecto que convida ao transe onírico, sonâmbulo; genericamente consistente, desafiadoramente pessoal, Serpentário inscreve-se na tradição do ensaio contemplativo (podia ser Van Sant, mas sem a opacidade de Gerry), do filme autoral que abre uma porta para um mundo diferente. Cabe-nos a nós decidir se queremos ou não acompanhar Arrais nesta viagem de road movie da mente que não tem estradas mas sim areia, poeira e rochas, para chegarmos à arara que encerra os segredos maternais.
Se Serpentário é um filme sob a presença da mãe, Ne croyez surtout pas que je hurle de Frank Beauvais (Forum) é marcado pelo pai. No caso, pela morte do pai, que teve lugar quando Beauvais o estava a acolher temporariamente à espera de entrar para um lar. O realizador nunca teve grande relação com o pai, e é sobretudo pela possibilidade esfumada de criar outro tipo de ligação que a sua morte pesa sobre todo o filme – viagem pelo inter-rail das memórias do realizador, consubstanciada num diário de seis meses de solidão e autismo na remota aldeia da Alsácia onde Beauvais tinha assentado arraiais. Uma separação romântica deixa-o sozinho na casa, isolado do mundo, sem transportes nem carta de condução e a duas horas da cidade mais próxima.
Entre a separação e o regresso a Paris, Beauvais passou seis meses a devorar filmes de modo quase obsessivo – e são esses filmes, 400 ao todo, clássicos e filmes malditos, obras de autor e filmes populares, a cores ou a preto e branco, que constroem Ne croyez surtout pas que je hurle. No écrã desfilam imagens, fotogramas, excertos dos filmes ao sabor da voz off do realizador, com I See a Darkness de Bonnie Prince Billy como mote (ou não fosse Beauvais, presença regular em festivais portugueses, um cineasta sempre com um especial gosto pela música). É um filme-manifesto, filme-exorcismo, filme-terapia sobre o homem e o mundo que o rodeia; onde Conceição o transfigura oniricamente, Beauvais prefere transfigurá-lo pelo cinema. E é muito bonito que o seja.