Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista
Faltam políticas de integração social que sejam municipais, metropolitanas e nacionais. O Jamaica é uma metáfora de um país que tem no outro extremo as Quintas (a do Lago; a da Marinha, as do Douro).
Num mundo em mudança, as mudanças nem sempre são bem aceites. A igualdade como ideal tem 230 anos contados a partir da Revolução Francesa, mas, como prática, é ainda e apenas, uma ideia. Num Portugal que não é monocromático, a pedagogia da cor é uma Escola com muito insucesso.
Vem isto a propósito da agitação em torno de episódios de discriminação recentes. Recentes, mas velhos de décadas, num país em que preto é cor de viuvez, de perda, de luto e de luta. Falar de discriminação, de racismo, de xenofobia, de misoginia, de sexismo ou de homofobia é trazer à tona uma sociedade plena de imperfeições.
Uma sociedade que permanece radicalmente inculta e afastada dos ensinamentos científicos do nosso tempo. Uma sociedade que resiste à mudança. Uma sociedade que tem ainda um sentimento de perda de um império que nunca, verdadeiramente nunca, existiu. Uma sociedade que nunca compreendeu o século XX enquanto tempo de emancipação e de liberdade para os povos não Europeus. Uma sociedade que bate no peito, mas não assume a sua quota-parte de culpa nessa ode à desgraça que permitiu a escravatura e o tráfico negreiro. Uma sociedade que luta há 500 anos para não integrar os ciganos que, resilientes, se mantêm por aqui. Uma sociedade que manteve ardentes autos de fé nas principais praças das nossas cidades e campos de desterro em vários continentes. Uma sociedade que nega o seu racismo endógeno, mas segrega, separa e exclui a diferença, os diferentes.
Volto ao Jamaica, também eu sem câmaras fotográficas e sem jornalistas. O Jamaica é toda uma metáfora de colonialismo e neocolonialismo. Plena de contradições e de sucessivos exercícios de poder (ou de inércia) acaba no que é hoje.
Aqui o Jamaica é toda uma metáfora porque urbanização do Vale de Chícharos no Seixal não tem o mesmo impacto do que ser Jamaica. Paredes de tijolo cru, fios eléctricos expostos ao vento e parabólicas apontadas ao mundo. Grafitis e retratos de heróis nas paredes. Cheiros de outras gastronomias, sons de outros continentes, palavras de outras línguas.
E ausências, muitas ausências. De um Estado que há muitos anos falhou na integração destes imigrantes e dos seus filhos; de uma política de habitação inclusiva; de uma política efectiva de combate à exclusão social; de um elevador social que impeça a reprodução das desigualdades.
Faltam políticas de integração social que sejam municipais, metropolitanas e nacionais. O Jamaica é uma metáfora de um país que tem no outro extremo as Quintas (a do Lago; a da Marinha, as do Douro). Uma metáfora de um país de desigualdade social profunda e da incapacidade de olhar este desafio de frente.
A inevitabilidade de olharmos as migrações como uma realidade que veio para ficar obriga-nos a repensar a comunidade social que somos. O racismo nativista virulento que vem surgindo em segmentos da população em países à nossa volta é o mesmo que ainda transparece de algumas das relações entre seres humanos aqui. Não há um racismo bom e um racismo mau. Há apenas estupidez nas acções que assumem a cor da pele como factor de discriminação naturalizada.
O racismo é uma naturalização das desigualdades e uma garantia de que não desaparecerão. Em vez de racismo podíamos falar de xenofobia, de discriminação social ou de bullying estrutural, o país seria o mesmo, as dimensões de exclusão seriam alternativas. Terminar de vez com o racismo ou a xenofobia é trabalho para toda uma sociedade.
É preciso criar uma estrutura nacional que reúna todo o muito que já sabemos sobre o tema e o devolva sob a forma de um programa nacional de combate ao racismo e à xenofobia. Mudar estruturas (como a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial transformando-a num regulador social e conferindo-lhe peso político e visibilidade social), criar conteúdos formativos para as autoridades e magistraturas, alterar a legislação de forma a cumprir e fazer cumprir o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, descolonizar os materiais formativos com que se socializam as crianças e jovens nas Escolas.
A sociedade portuguesa, toda ela nas suas múltiplas componentes, necessita de um upgrade civilizacional que permita ultrapassar os 230 anos que temos de atraso na integração social da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Também da Jamaica, numa inspirada “Redemption song” veio o mote “Emancipate yourselves from mental slavery. None but ourselves can free our minds”.