Já podemos falar de novos limites à lei da greve?
Porque a guerra com os enfermeiros não é sobre o impacto da greve ou a sua injustiça, mas sobre a forma como ela se desenrolou fora do controlo das estruturas sindicais. É isso que chateia a esquerda.
Não sei se por defeito da explicação, se por defeito de compreensão, vários leitores ficaram confundidos com o meu texto de terça-feira, concluindo a partir daquilo que escrevi que eu era a favor da actual greve dos enfermeiros, por ela estar a infernizar a vida ao Governo e ao PCP. Pois bem, caros leitores: vocês concluíram muito mal.
A chamada “greve cirúrgica” dos enfermeiros está errada. Tal como está errado que os professores façam greves cirúrgicas às avaliações de notas. Tal como está errado que os transportes públicos façam cirúrgicas paragens entre as 6.30 e as 9.30 da manhã. Aliás, isto não é apenas errado – no meu entender, não deveria sequer ser legalmente permitido. Há dois meses escrevi neste espaço um artigo intitulado “Os funcionários públicos devem poder fazer greve?”, onde expus algumas das minhas principais perplexidades em relação ao tema.
Mas o objectivo do artigo mais recente foi outro – pretendi assinalar a curiosa diferença de reacções da esquerda a esta greve quando comparada com outras greves igualmente cirúrgicas. Dir-me-ão: deixar doentes por operar não é o mesmo que deixar estudantes sem aulas. Com certeza. A gravidade para quem sofre com a greve não é certamente idêntica. Contudo, o mecanismo é o mesmo, sem tirar nem pôr: aproveitar o generoso cardápio à disposição dos grevistas portugueses para ensaiar as mais cruéis paralisações.
Note-se que a minha preocupação em relação a este tipo de greves não se prende com a justiça ou injustiça das reivindicações. Tendo em conta o estado miserável em que se encontra o SNS, existe alta probabilidade de os enfermeiros estarem a ser maltratados e, nessa medida, os motivos da greve podem ser justíssimos. Simplesmente, não é por o motivo de uma greve ser justo que passa a valer tudo para corrigir essa injustiça. Da mesma forma que não é por eu ser assaltado na rua por um carteirista que estou autorizado a ir a sua casa surripiar-lhe as pratas.
Tudo tem a ver com o equilíbrio de posições entre quem protesta e quem sofre com o protesto. Ora, se esse equilíbrio existe no sector privado, ele não existe no sector público. Reparem no caso dos enfermeiros. Se (1) quem lhes paga o salário não pode fechar portas, se (2) o receio de despedimento é inexistente, e se (3) o corte no salário pelos dias de greve ainda lhes é devolvido, por que raio não há-de um enfermeiro ficar em casa a ver o programa da Cristina Ferreira? O que é que essa pessoa perde por não ir trabalhar? A resposta é óbvia: nada. A soma de (1) + (2) + (3) coloca a totalidade do risco do lado do empregador Estado e dos pobres utentes, e nenhum risco do lado do empregado enfermeiro.
Se nesta matéria eu fosse um optimista, diria, pelas actuais posições do Governo e dos parceiros à sua esquerda, que os responsáveis políticos perceberam finalmente esta terrível distorção (mais uma a favor dos funcionários públicos). Mas é evidente que não perceberam nada, no sentido em que já tinham percebido tudo há muito.
Ainda não vai ser desta que as micro-greves, as greves cirúrgicas ou as greves rotativas, que conseguem impactos gigantescos com esforços mínimos, vão ser ilegalizadas neste país. Porquê? Porque a guerra com os enfermeiros não é sobre o impacto da greve ou a sua injustiça, mas sobre a forma como ela se desenrolou fora do controlo das estruturas sindicais. É isso que chateia a esquerda. Não é isso que chateia quem fica sem aulas, sem transportes ou sem operação.