A hostilidade contra os ciganos está a aumentar na UE
Parlamento Europeu já instou Estados-membros a combater ciganofobia, mas alguns não parecem empenhados. A situação é crítica em países como a Bulgária, onde os ultra-nacionalistas fazem parte do Governo. Capítulo III de uma série sobre inclusão das comunidades ciganas na UE.
A hostilidade contra os ciganos tem estado a crescer dentro da União Europeia e a ascensão dos partidos extremistas faz prever o pior. A necessidade de a combater já foi elevada a prioridade de topo pelo Parlamento Europeu.
Neste momento, a Bulgária está em destaque. No último mês, houve manifestações em várias cidades europeia a reclamar a demissão do ministro da Defesa e vice-primeiro-ministro Krasimir Karakachanov, um dos líderes do Patriotas Unidos, três formações ultranacionalistas NFSB, VMRO e Ataka que se coligaram com a direita para governar.
Para perceber a origem da polémica é preciso recuar um mês. No dia 6 de Janeiro, houve desacatos na localidade de Vojvodinovo, nos arredores da cidade de Plovdiv. Talvez o caso tivesse passado despercebido se não envolvesse um militar búlgaro não cigano e dois irmãos búlgaros ciganos.
De visita à aldeia, Karakachanov fez declarações a uma rádio local que logo se propagaram: “A tolerância da sociedade búlgara esgotou-se. […] A verdade é que precisamos de desenvolver um programa completo que seja uma solução para o problema cigano […] A Bulgária tem de deixar de ter em conta Bruxelas e os defensores dos direitos humanos.”
A eventual culpa dos dois irmãos alargou-se a todo o seu grupo étnico, lamenta Jonathan Lee, do European Roma Rights Centre, uma organização internacional que luta contra a discriminação e pelos direitos dos ciganos. O Dia da Memória do Holocausto, que se assinala a 27 de Janeiro, aproximava-se “para lembrar até onde essa retórica pode levar”.
A História não será conhecida por todos: 25 a 50 % da população cigana europeia foi vítima do Holocausto, embora nos julgamentos de Nuremberga ninguém tenha respondido por enviar ciganos para as câmaras de gás, nem qualquer cigano tenha sido chamado a depor – só em 1982 o genocídio dos ciganos foi reconhecido pelo então chanceler alemão Helmut Schmidt, só em 2001 foi inaugurada a exposição permanente “A destruição dos ciganos europeus” em Auschwitz, na Polónia, e só em 2012 se inaugurou o primeiro monumento em memória das vítimas ciganas do Holocausto em Berlim, na Alemanha.
Aquele caso não se esgotou ali, conta Zeljko Jovanovic, director do Roma Initiatives Office, uma estrutura da Open Society Foundations destinada a reforçar as vozes das pessoas ciganas. Na sequência daquelas declarações, “15 casas foram demolidas pelas autoridades locais e por grupos nacionalistas que ameaçaram os moradores ciganos”. “Desde então, quase todas as famílias ciganas fugiram das suas casas e procuraram refúgio em Plovdiv.”
Desta vez, as comunidades ciganas búlgaras não ficaram a assistir. “Organizaram-se para evitar mais demolições e recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Centenas de ciganos protestaram em Sófia, mas também em Bruxelas e na Alemanha, para exigir a renúncia do ministro.”
Alerta repetido
São entre dez e doze milhões na Europa os roma, os viajantes, os sinti, os manouches, os calés, os romanichéis, os boiash e outros grupos étnicos habitualmente designados por roma ou ciganos. E estão espalhados por todo o espaço comunitário, com as populações de maior dimensão na Roménia, na Bulgária, na Hungria, na República Checa e na Eslováquia.
Com os partidos de extrema-direita a ganhar terreno e umas eleições europeias agendadas para Maio, a apreensão cresce. “Não só porque utilizam as minorias em geral, e as comunidades ciganas em particular, como bode expiatório”, explica o sociólogo Sérgio Aires, que presidiu à EAPN – a Rede Europeia AntiPobreza entre 2012 e 2017. Também porque “são contra a União Europeia, responsabilizando o projecto europeu por todos os males de que padecemos ao nível nacional, o que, em última instância, põe ainda mais em perigo quem tinha como principal aliado a União Europeia e as suas Instituições”.
A Comissão Europeia está há anos a alertar para o crescimento da hostilidade contra os ciganos, associando-a “ao aumento da radicalização e do extremismo”. “É essencial que as autoridades públicas se distanciem do discurso racista e xenófobo que visa os ciganos e criminalizem de modo eficaz a retórica contra os ciganos, os discursos de incitamento ao ódio e os crimes de ódio”, avisou já em 2016, na comunicação ao Parlamento sobre as estratégias nacionais de integração das comunidades ciganas, que instigou os Estados-Membros a lançar em 2011, na sequência das expulsões de ciganos búlgaros e romenos de França. “É importante tomar consciência de que a relutância em agir também contribui para a aceitação da intolerância na sociedade.”
O Parlamento Europeu fez coro em 2017 ao apelar aos Estados-Membros que tomassem “medidas corajosas” contra o anticiganismo, que se manifesta de acordo com os estereótipos – “se vivem num acampamento é porque estão habituados a viver assim; se praticam mendicidade é porque são preguiçosos; se têm filhos louros, é porque os sequestraram; se os filhos não frequentam a escola, é porque não aguentam disciplina, são uns ‘espíritos livres’”.
Na resolução, o Parlamento instou os Estado-membros a condenarem e punirem o não reconhecimento do Holocausto dos ciganos, o discurso de incitação ao ódio e a procura de bodes expiatórios. E a apostarem nas melhores práticas de combate ao preconceito. No mesmo documento, a pensar num quadro europeu pós-2020, pediu à Comissão Europeia para “introduzir indicadores de luta contra a discriminação nos domínios da educação, do emprego, da habitação, etc., já que a hostilidade em relação aos ciganos mina a aplicação bem-sucedida das estratégias nacionais de integração dos ciganos”.
A Comissão teve isso em conta na proposta de abordagem estratégica para depois de 2020 que apresentou em Dezembro de 2018. “A ênfase mais clara no combate ao anticiganismo e à discriminação deve completar e não substituir a abordagem de inclusão”, lê-se no documento.
Linha vermelha ultrapassada
A mensagem foi aplaudida por peritos e activistas, apesar do alcance limitado. Em última análise, lembra Jonathan Lee, a inclusão dos ciganos faz-se sobretudo ao nível dos Estados-membros. “Se um número crescente de políticos que governam os Estados-membros defendem uma ideologia extremista, remanescente da retórica fascista do século passado, então o anticiganismo que existe na sociedade é exacerbado, permitindo que o ciclo de exclusão continue”.
Parece-lhe que a linha vermelha já foi ultrapassada dentro da União Europeia. “A extrema-direita já não está confinada às franjas marginais da política. Em países como a Áustria, a Hungria, a República Checa, a Bulgária, a Polónia e a Itália, as políticas de extrema-direita estão no poder ou em posição de influenciar o poder”, sublinha. “Cada vez mais, os seus pontos de vista, em particular sobre ciganos e muçulmanos, são a norma.”
De toda a Europa lhe chegam notícias de anticiganismo. Na Bulgária, repetem-se as denúncias sobre despejos e raids policiais que vão a acampamentos ou bairros aplicar castigos colectivos. Anos após ano, a França desaloja à volta de dez mil ciganos de acampamentos clandestinos, alguns várias vezes, sem lhes oferecer alternativa, o que os mantém presos a um ciclo. Na Hungria, na Eslováquia e na República Checa milhares de crianças ciganas continuam a frequentar “escolas especiais”. Em Itália, o ministro do Interior, Mateo Salvini, propõe um registo de ciganos. Quer fazer um censo e expulsar todos os ciganos não italianos, a que chama “uma solução para a questão cigana”. “Infelizmente, vamos ter de ficar com os ciganos italianos, porque não os podemos expulsar.”
“A Europa de Leste apresenta, na sua globalidade, maior hostilidade”, observa Maria José Casa-Nova, investigadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Na Europa Ocidental, porém, também há países “extraordinariamente hostis”. “Na verdade, a hostilidade, o estigma, o racismo contra a população cigana existem em todos os países. Diferem no grau e na intensidade. Isto faz diferença, mas não faz propriamente “a” diferença.”
“A situação dos ciganos espelha a profunda crise dos valores europeus e da democracia liberal”, avalia Zeljko Jovanovic. “Muitos políticos em toda a Europa aprenderam que podem manipular a sociedade contra os ciganos para ganhar votos.”
Uma categoria à parte
A discriminação em razão da origem étnica é a forma mais comum de discriminação dentro do espaço comunitário. Em 2016, segundo a Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, 80% dos ciganos viviam em risco de pobreza, um terço das famílias não dispunham de água canalizada, metade não tinha duche ou casa de banho dentro de casa, um terço das crianças corria o risco de ir para a cama com fome pelo menos uma vez por mês. Muitos têm de saltar vedações, atravessar auto-estradas, ou enfrentar cães vadios todos os dias para ir buscar água. E o maior problema, no entender de Jonathan Lee, é a maioria dos europeus pensar que “isso é normal”.
“Há um factor comum em muitos países europeus: as pessoas ciganas são consideradas uma categoria à parte, às vezes não são consideradas bem humanas”, comenta Belén Sánchez-Rubio, directora do Departamento de Internacional Secretariado Gitano, entidade que gere a Rede Europeia para a Inclusão da População Cigana (EURoma).“Há uma rejeição a estas pessoas, que tem a ver com diferentes formas de entender o mundo, que se tem desenvolvido historicamente, que está no imaginário colectivo, que é reforçado com preconceitos, que é uma barreira clara para qualquer pessoa cigana ter outro tipo de vida.”
“Desde a sua chegada à Europa que os ciganos foram tratados com suspeição e alvo de rejeição”, comenta Maria Manuela Mendes, do Centro de Investigação Universitário do Instituto Universitário de Lisboa. Em vários países “foram implementadas medidas discriminatórias, desde a pena de morte, à deportação para as colónias até à obrigação de deslocação de lugar em lugar.” E, “ainda hoje, em Portugal e em outros países europeus a ciganofobia é um fenómeno bem enraizado nas instituições e na vida quotidiana.”
Basta ver a quantidade de sapos expostos nos estabelecimentos comerciais, um modo de fazer com que os ciganos não se sintam bem-vindos, indica Aires. Ou o que se escreve nas redes sociais e nas caixas de comentários dos órgãos de comunicação social sempre que há notícias sobre ciganos, como diz Bruno Gonçalves, vice-presidente da associação Letras Nómadas.