Um grito do coração pelos miúdos de Beirute
Cafarnaum, que esta semana chega às salas, acompanha um miúdo pobre de Beirute que processa os pais por o terem trazido ao mundo. Com esta história a libanesa Nadine Labaki, que produziu o próprio filme para poder ter tempo para acompanhar a realidade das suas personagens, diz ter inventado o seu cinema num país sem tradição cinematográfica.
Nadine Labaki, realizadora-argumentista libanesa: tornou-se a primeira cineasta árabe a ganhar um grande prémio na competição de um festival quando recebeu o Prémio do Júri no Festival de Cannes de 2018 por Cafarnaum - é a sua terceira longa-metragem. A Sony Pictures Classics rapidamente avançou para a distribuição do filme nos EUA e a história de dois meninos nos bairros de lata de Beirute tem desde então partido os corações dos espectadores, recebendo prémios da audiência em Calgary (Canadá), Melbourne (Austrália), Mill Valley (Califórnia), Sarajevo e Noruega. Trazendo à memória os neo-realistas italianos, é forte candidato ao Óscar para Melhor Filme Estrangeiro de 2019.
Labaki é conhecida pelos seus filmes centrados em mulheres: de 2007, Caramelo, acerca das intersecções das vidas de cinco libanesas, e, de 2011, E agora, aonde vamos?, sobre mulheres cristãs e muçulmanas que se juntam para atenuar as tensões na sua aldeia. Virando-se para as crianças, agora que ela própria já é mãe, conseguiu orientar minuciosamente os seus actores amadores miúdos (e também adultos), cujas vidas reflectem as suas personagens. Cafarnaum é ainda mais impressionante porque Labaki consegue polvilhar a história com uma variedade de assuntos que a preocupavam na altura: crianças maltratadas, imigrantes ilegais, trabalhadores imigrantes, a ideia de fronteiras, o facto de necessitarmos de um papel para provar a nossa existência e que pode ser anulado se assim o quiserem e, claro, o racismo. O título do filme refere-se ao caos que resulta da justaposição antagónica de todos estes elementos nos bairros de lata de Beirute.
“A história tinha vindo a germinar dentro de mim há bastante tempo, pois todos os dias se vê estas crianças negligenciadas”, explica Labaki, 44 anos. “O que eu queria destacar é que eles estão excluídos do sistema e são completamente invisíveis. Por isso queria saber mais sobre eles. O que acontece quando este miúdo se vira e desaparece na esquina. Para onde vai ele? Quem é ele? Dizem-nos que não devemos dar dinheiro a estes miúdos porque eles trabalham para as máfias, que chegam de manhã de autocarro e que à noite vem alguém os vem apanhar. Isso não é verdade. Isso é desumanizar estes miúdos. Aprendi que são crianças normais que não têm outros meios e que estão fora do sistema.”
Labaki visitou prisões de menores e assistiu a sessões de tribunal relativas aos seus casos. “Nos meus quatro anos de pesquisa falei com muitos miúdos e no fim da conversa perguntava-lhes sempre: ‘Estás contente por ter nascido?’ e eles respondiam ‘Não!’, com muita raiva. ‘Por que razão estou aqui? Por que é que os meus pais me trouxeram a este mundo se não vão tomar conta de mim?’”.
“Conheci um rapaz que estava na prisão e que tinha sido abusado pela mãe. Depois fugiu e foi abusado nas ruas. Durante toda a sua vida esperou pelo dia em que a mãe o chamaria. Não queria nada da vida, queria apenas que a mãe o chamasse, e a mãe nunca o chamou. A maior parte destes miúdos preferia acabar com a sua própria vida, e muitos deles tentaram mesmo suicidar-se.”
Cafarnaum acompanha um rapaz pobre de Beirute, Zain (o refugiado sírio Zain Al Rafeea), que está a processar os pais por o terem trazido a este mundo, dado o que ele tem que suportar nos bairros de lata de Beirute. Para começar não tem documentos oficiais e até os pais não sabem a sua verdadeira idade, que os médicos avaliam à roda dos 12 anos. Em flashbacks percebemos o que o levou até à situação em que se encontra e aos seus problemas actuais, pois nesta altura está a cumprir uma pena de cinco anos de prisão por ter esfaqueado alguém. Acontece que tinha fugido da apinhada casa da sua família após os pais, traficantes de droga, terem vendido a sua adorada irmã ao senhorio pelo preço de algumas galinhas. Acaba por ir viver com Rahil, uma refugiada etíope que trabalha ilegalmente e vive num bairro de lata com o filho pequeno, Yonas. A cena fulcral da história mostra como quando Rahil é detida pelas autoridades, o desenrascado Zain fica a tomar conta de Yonas, interpretado por Boluwatife Treasure Bankole, uma menina de um ano adorável.
A premissa do filme de Zain levar os pais a tribunal pode ser pouco credível (Labaki interpreta a sua advogada, pois na vida real apoiou-o e ajudou-o a mudar-se para a Noruega, onde vive agora com a sua família). Mas qualquer esforço da imaginação é perdoado, dado que os actores são impecáveis. É quase impossível não nos apaixonarmos por estes miúdos.
“Encontrá-los foi quase uma missão impossível”, afirma Labaki. “O nosso director de casting descobriu Zain na rua. Ele estava a brincar com um amigo e envolveram-se numa discussão e ele filmou-os. Bastou-me ver dois minutos dessas imagens para perceber que tinha encontrado o Zain. A Treasure [em inglês, “tesouro”] é o grande tesouro do filme. Ela é simplesmente espantosa e estava a viver a mesma situação que o Yonas, pois é filha de imigrantes que estavam a trabalhar ilegalmente no Líbano. Não tinha documentos mas agora já tem. Regressou ao Quénia [de onde a mãe é natural] e já pode ir à escola, mas até ao filme não tinha existência legal.”
Labaki diz que o segredo para o sucesso do filme foi ela ter tido por um longo período de tempo trabalhar com os jovens protagonistas. “Decidimos produzir o filme para podermos ter liberdade”, explica, referindo-se a si e ao marido, Khaled Mouzanar, que também compôs a banda sonora. “Se quisesse filmar mais uma hora ou passar o dia todo à espera que Yonas sorrisse ou fizesse o que quer que fosse preciso, eu podia fazer isso. Estava tão fascinada com aquelas pessoas, com a sua realidade, que nunca quis que eles representassem. Eu apenas queria que fossem eles próprios. Por isso adaptei a minha história à realidade deles, e não o contrário.”
Afirma que amadureceu enquanto realizadora e após três longas-metragens sente que conseguiu alcançar o seu estilo. “Nos filmes anteriores o objectivo tinha sempre sido ficar o mais próximo possível da realidade, mas nunca consegui alcançar isso como queria. O que agora é diferente é a liberdade que nos permite a maneira como filmámos. Pude fazer uma grande quantidade de takes e passar o tempo apenas a observar a realidade das personagens. De certa forma criei a minha própria maneira de fazer filmes, porque no Líbano não existe uma indústria cinematográfica, não existe uma tradição de cinema. Estávamos a dar os nossos primeiros passos e nunca pude aprender com a ajuda de outros realizadores.”
Se bem que trabalhar com o marido como produtor teve as suas vantagens, também foi arriscado.
“Por vezes não tínhamos dinheiro para continuar no dia seguinte. Mas conseguimos sempre arranjar uma solução e avançávamos um dia de cada vez. Realmente demos tudo o que tínhamos, e tudo foi feito de uma forma natural. Essencialmente fizemos o filme em casa, pois a produtora fica no mesmo edifício em que vivemos, eu conseguia conciliar os nossos filhos e o trabalho. A vida pessoal e o trabalho ficaram todos misturados, mas isso permitiu-me fazê-lo ao longo de muito tempo. Estivemos dois anos a fazer a montagem e não me consigo imaginar a fazer isso numa dispendiosa sala de montagem. Filmámos 500 horas e a primeira versão do filme tinha 12 horas.”
Admite que o facto de ser mãe de um filho de nove anos e de uma bebé exerceu uma enorme influência na história.
“A minha filha tinha quase sete meses quando começámos a filmar e eu estava a dar-lhe de mamar, por isso havia semelhanças. Todos os dias à hora do almoço eu ir dar-lhe de mamar e é por isso que entrei em tantos pormenores acerca de como Rahil usa a sua bomba de peito para poder ir trabalhar. A realidade e a ficção estavam sempre a cruzar-se uma com a outra. Agora a minha filha tem dois anos e meio e parei de lhe dar de mamar no dia em que terminei a montagem.” Faz uma pausa e bate palmas. “Não sei por que razão as coisas estão tão interligadas.”
Labaki reconhece que ter tido filhos lhe deu energia e, “de uma estranha forma”, também lhe deu mais concentração e determinação.
“O tempo é tão precioso. Sabemos que cada segundo conta e ficamos mais produtivos, pois sabemos que não temos tempo. Eu também estava a filmar em circunstâncias muito, muito más. Por vezes estávamos no limite, mas a esperança é a última coisa a morrer. Apanhámos infecções nos olhos, a certa altura a minha cara ficou inchada e estive uma semana com febres. Mas sobrevivemos.” É interessante ela dizer que ser mulher não tem sido uma desvantagem ao fazer filmes no Líbano.
“Nunca me senti numa situação especial por ser uma realizadora, sou apenas alguém que faz filmes. Nunca senti que tinha mais ou menos privilégios. Tenho sorte por ter estado nessa situação, mas também percebo que não é isso o habitual para outras mulheres no meu país e para outras mulheres no resto do mundo. Dadas as histórias que tenho ouvido, sei que este problema existe para muitas, muitas mulheres e acho que o movimento [#MeToo] é óptimo por ter aberto o debate. A forma de tratar disso é falando. Já não é um tabu e estou certa de que esta questão brevemente deixará de ser colocada. Não creio que alguém me irá perguntar se me sinto diferente enquanto realizadora na competição de Cannes. Estou certa de que estamos no caminho correcto. É normal que mais mulheres irão conseguir fazer filmes e as vozes das mulheres irão ser escutadas.”