"O mais provável era teres sido delinquente ou assassinado." Não sei quantas vezes ouvi isto durante a adolescência. Dezenas, talvez centenas. A sentença nunca me espantou, porque a infância já me tinha mostrado o que a vida era: a minha primeira memória de vida é o momento em que eu e a minha mãe fugimos da casa onde vivíamos com o meu pai.
Vi-o bater na minha mãe por inúmeras vezes, antes e depois da fuga, fosse em casa ou no meio da rua. Cheguei a ser raptado por ele numa noite de Natal. Uma tarde, o meu pai mostrou-me uma arma e disse que a ia utilizar para matar a minha mãe. Eu tinha quatro anos. A minha infância foi passada nisto: um medo constante e absoluto pela chegada da fúria e da morte, que nos parecia inevitável.
Hoje, fico a tremer sempre que ouço ou vejo violência em meu redor. Fico paralisado, a morrer de medo, como se o meu subconsciente voltasse a tocar uma gravação do que nos aconteceu nos meus primeiros anos de vida. A violência doméstica está-me no sangue, e o trauma também. Valeu-me uma depressão agressiva nos últimos anos da adolescência ("A culpa foi tua, ele só ficou assim depois de nasceres", diziam-me algumas velhinhas incautas e que mal sabiam do que falavam), que ainda tem sequelas ligeiras.
Esta terça-feira, ao ver a notícia do homicida-suicida do Seixal — que já estava sinalizado por violência doméstica desde 2017 (é sempre assim, não é?) —, passou-me uma única coisa pela cabeça: podia ter sido eu a ser encontrado morto na mala daquele carro. Porque, quando ia à polícia apresentar queixa, a minha mãe e as suas alegações eram desvalorizadas, e por isso estávamos entregues à nossa própria sorte. Foi um milagre, e também fruto da tenacidade da mulher que tenho o orgulho de ter como mãe, termos sobrevivido.
Salvei-me – ou melhor, salvaram-me. A minha mãe, primeiro, e depois o meu padrasto. Apesar do medo, conseguimos ser uma família. Mesmo tendo mudado de casa umas cinco vezes. Mesmo andando na rua sempre a olhar por cima do ombro. Mesmo com as ameaças de morte veladas em telefonemas supostamente anónimos. Mesmo apesar de vivermos com o medo do seu regresso, medo que ainda dura, embora seja ténue. As probabilidades estavam contra nós, mas sobrevivemos. E sabemos que somos um exemplo que foge à norma, porque a norma é que sejam as mulheres, os filhos e os novos companheiros a sofrer às custas dos homens abusadores.
Só em 2019, foram nove as mulheres que pereceram às mãos dos maridos, companheiros ou namorados. Quantas mais serão precisas até que saibamos como protegê-las? Quem é a pessoa que vai ter a coragem de mudar, finalmente, o enquadramento legal para proteger as mulheres e não quem as agride? Quantas mais mães terão de morrer? Quantos mais filhos terão de sofrer e ficar traumatizados? De quanto mais tempo precisamos para enjaular os monstros que não sabem ter famílias ou cuidar delas?
Eu não morri, mas morreu a Lara. Tinha dois anos.
A Justiça, essa, continua viva, embora ligada às máquinas, a lançar meras advertências a juízes que se coadunam com os agressores. Mas nós precisamos de uma Justiça que proteja as vítimas.