“Brexit”, uma excentricidade da democracia directa?
O sistema político inglês, sem qualquer referendo, sempre se opôs a uma integração europeia plena. Mesmo a cláusula que permite a um país sair da UE foi uma vitória inglesa.
Quando acompanho os debates em Inglaterra em torno do “Brexit”, fico com a ideia de que Theresa May é das poucas adultas que por ali andam. Foi contra a saída do Reino Unido da União Europeia, mas, tendo esta opção ganhado o referendo, soube respeitá-la, fazendo o que lhe competia: negociar o melhor acordo de saída possível. A facilidade com que a mandam renegociar, como se um melhor acordo fosse fácil e dependesse apenas da vontade dos líderes ingleses, é um sintoma da imaturidade dos que se lhe opõem.
Não sou dos que contestam a legitimidade de um segundo referendo. Neste momento, são bem mais claras as implicações de uma saída da União. Eleitores com mais informação poderão querer alterar o seu voto. Mas convenhamos que demorou demasiado tempo até que o Partido Trabalhista colocasse seriamente a hipótese em cima da mesa.
A ideia do segundo referendo faz muita confusão na cabeça de muita gente por dois motivos: por um lado, há aqueles que consideram que haver um segundo referendo é desrespeitar o resultado do primeiro; por outro, há quem seja por princípio contra referendos e a hipótese de entregar aos eleitores decisões sobre a sua soberania.
Os dois lados fazem-me confusão. A ideia de que tem de se estar agarrado ao resultado de um referendo para sempre é absurda. Em cada legislatura, o que não faltam são leis a reverter decisões anteriores. Num dado momento, qualquer maioria é conjuntural e não é democrático eternizá-la.
O segundo lado é ainda pior. A ideia, muito comum em Portugal, de que a democracia representativa pode dispensar a participação directa dos cidadãos baseia-se no princípio de que os representantes democráticos são seres iluminados, que sabem melhor que ninguém qual o interesse da população. Mas não sobrevive a qualquer análise.
Os políticos são pessoas e, naturalmente, têm os seus interesses. Isso tem consequências. Por exemplo, será difícil esperar que um parlamento pejado de advogados, muitos dos quais associados a grandes sociedades, legisle contra os seus interesses. Enquanto assim se mantiver, nenhuma reforma da justiça será feita em nome do interesse do povo. A não ser, claro, que o interesse do povo coincida com o das sociedades de advogados. Ao longo de décadas, também pudemos ver como muitos vão directamente de grandes empresas, de bancos e de seguradoras para os governos. Salvo algumas excepções, não actuarão contra os seus interesses. É humanamente inevitável.
A ideia de que se faz política de acordo com os interesses do povo é uma ficção apenas contrariada pela necessidade de conseguir votos para ganhar eleições. É por isso que a democracia directa deve ser uma aliada da democracia representativa. Há estudos que mostram que, nos Estados com menos entraves à democracia directa, as políticas públicas estão mais alinhadas com as preferências dos cidadãos.
Outro argumento é o de que há assuntos demasiado complexos para o cidadão comum. Este argumento falha o alvo. A experiência mostra que os deputados é que não têm capacidade para legislar mesmo sobre as coisas mais simples. Ainda que admita que, individualmente, há deputados excelentes, as decisões do colectivo são, muitas vezes, irracionais.
Poderia dar vários exemplos eloquentes, mas pego num recente, que tanto preocupa tanta gente: a subida do valor das rendas de habitação permanente. Há duas formas de intervir no mercado para que um preço baixe: ou se aumenta a oferta ou se diminui a procura (ou uma combinação de ambas). E, claro, dentro de cada uma destas formas há uma miríade de políticas possíveis, cada uma com os seus prós e contras. No nosso caso, nem vale a pena discutir os prós e contras, porque a legislação que sai da Assembleia da República nem os mínimos de literacia cumpre. Como explicou Vera Gouveia Barros, no jornal online ECO, os nossos deputados andam a produzir legislação que reduz o interesse dos proprietários em pôr as suas propriedades a arrendar. Ou seja, a oferta de habitação para arrendar vai diminuir, o que quer dizer que as rendas vão subir e não descer.
Para que se perceba a indigência das nossas leis, basta ver que, de acordo com a legislação aprovada, um senhorio que faça dois contratos de arrendamento sucessivos de dois anos paga menos impostos que um que faça um contrato de quatro anos. Temos deputados que, para promover o arrendamento de longa duração, dão incentivos fiscais a quem faz contratos sucessivos de curta duração!
Evidentemente que uma decisão tomada em referendo que a tantos parece louca, como a decisão de sair da União Europeia, não deixaria de ser aproveitada pelos detractores dos referendos. Será inútil lembrar que o Reino Unido tem uma tradição democrática bem mais longa do que a nossa. E que também na Escócia se votou em referendo a continuidade no Reino Unido e que o Québec fez o mesmo em relação ao Canadá. Ou, voltando à União Europeia, mesmo o Reino Unido, nos anos 70, já tinha referendado a decisão de ficar ou não na União Europeia (na altura chamada Comunidade Económica Europeia). Foi também por referendo que os dinamarqueses decidiram não aderir ao Euro. (E pode alguém afirmar que estavam errados quando escolheram manter a sua moeda?)
Goste-se ou não da decisão do Reino Unido, e eu sou dos que não conseguem conceber uma Europa sem os ingleses, a verdade é que a sua decisão é o resultado de um caminho político que tem vindo a ser trilhado desde Margaret Thatcher. Não só Thatcher era uma verdadeira eurocéptica, que, por exemplo, recusou que o RU fizesse parte do espaço Schengen, como os governos que se lhe seguiram também o foram. Foi no governo de Tony Blair que o Reino Unido decidiu não aderir ao Euro, dando um dos principais golpes ao processo de integração europeia. A moeda única é um projecto tão essencial que, com excepção da Dinamarca, nenhum outro país pode ficar fora dela: a pertença à União Europeia obriga à adesão ao Euro.
(Muitos pensam que a Suécia também não está obrigada a juntar-se à moeda única, mas estão enganados. Caso a Suécia cumpra os critérios, também a coroa sueca será substituída pelo Euro.)
O sistema político inglês, sem qualquer referendo, sempre se opôs a uma integração europeia plena. Mesmo a cláusula que permite a um país sair da União Europeia foi uma vitória inglesa. Não vou tão longe como Francisco Mendes Silva, que no Jornal de Negócios defendeu que “o 'Brexit' é uma inevitabilidade histórica”. De qualquer forma, tratar este resultado, o “Brexit”, como uma excentricidade apenas possível por referendo é pouco avisado.