Manuel Heitor, empregador implacável
Olhem para o último Concurso de Estímulo ao Emprego Individual, que excluiu 3600 investigadores, entre eles dois prémios Pessoa, e formem a vossa própria opinião.
O exmo. senhor ministro de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), Manuel Heitor, afirmou em entrevista publicada a 1 de Fevereiro de 2019 que a ciência portuguesa tem, “sem dúvida nenhuma” pleno emprego graças à criação por parte do Governo de mais de 5000 contratos que serão assinados antes de terminar o seu mandato. Segundo Manuel Heitor, a procura de doutorados é superior à oferta, e então agora só há que 1) formar mais doutorados e 2) atrair mais doutorados do estrangeiro para preencher o grande número de vagas disponíveis no sistema científico nacional (SCN). Ainda não sei se a naturalidade e a frequência com a qual o ínclito Manuel Heitor abandona a realidade da ciência portuguesa é uma forma de evasão romântica ou o acto voluntário de um político calculista e demagogo.
É verdade que era absolutamente necessário criar esses 5000 contratos para doutorados, sob risco de o SCN simplesmente deixar de existir. Aqui há que lembrar que o SCN é mantido principalmente por fundos do Estado (muitas vezes com recurso a fundos europeus para o desenvolvimento). Também concordo com o exmo. ministro em que há que formar e atrair mais doutorados, não para cobrir umas vagas inexistentes, mas sim para fazer crescer o SCN, que bem precisa. O resto é pura propaganda.
A ciência portuguesa é uma comunidade pequena e, para além disso, está longe do pleno emprego. O presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Paulo Ferrão, diz que Portugal produz 2000 doutorados por ano, mas em quase toda a Europa há mais doutorados por milhão de habitantes do que em Portugal.
Se aqui não há mais doutorados é porque não se oferecem oportunidades para a sua integração no mercado de trabalho, e eles emigram. Agora mesmo, a principal via para a incorporação de doutorados no mercado de trabalho português é a academia (universidades e centros de investigação financiados pelo Estado), e os concursos existentes têm uma taxa de sucesso sempre inferior ao 15%. Isso quer dizer que em cada convocatória ficam de fora pelo menos 85% dos candidatos. Tinham esses candidatos pouco mérito para entrar no SCN? Olhem para o último Concurso de Estímulo ao Emprego Individual, que excluiu 3600 investigadores, entre eles dois prémios Pessoa, e formem a vossa própria opinião.
O exmo. senhor ministro tem também declarado internacionalmente a sua vontade de que para 2030 a metade do orçamento nacional para investigação e desenvolvimento seja coberto por capital privado. Mas pode o tecido empresarial e industrial português absorver tamanho esforço económico? A resposta é um claríssimo “não”, e isto está relacionado com o tema que nos ocupa.
Segundo a OCDE, Portugal é muito bom nos rankings internacionais de produção científica (graças aos seus dedicados e estóicos cientistas), mas chumba sempre em inovação e translação de tecnologias a produtos para o mercado. Porquê? Porque Portugal não investe dinheiro suficiente (nem com suficiente regularidade nem com suficiente estabilidade) em investigação e desenvolvimento, pelo que é impossível gerar um tecido empresarial e industrial baseado em novas tecnologias e capaz de absorver os novos doutorados. Assim, o Estado continua a carregar com os custos de formação e contratação dos poucos doutorados que consegue integrar com um orçamento para a ciência sempre inferior ao 1,3% do PIB. É a pescadinha de rabo na boca.
Ninguém está a pedir pleno emprego numa sociedade tão castigada pela crise, mas o SCN está permanentemente a excluir a maior parte de recursos humanos especializados para a formação dos quais a sociedade portuguesa contribuiu com um custo muito elevado. É lamentável, inclusivamente porque têm um valor inestimável para o nosso país.