Rezar pelo jornalismo

Um artigo de António Guerreiro, publicado originalmente na revista Electra, como introdução a um dossier sobre o jornalismo e os novos media.

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Weegee(Arthur Fellig)/International Center of Photography/GettyImages

O enfraquecimento do jornalismo, o processo que lhe retirou o poder e as funções que tinha adquirido desde o Iluminismo, é quase sempre explicado por factores que decorrem da nova paisagem mediática e dos constrangimentos económicos a que está submetida a imprensa e, em especial, alguns géneros jornalísticos (o jornalismo noticioso, o jornalismo cultural, a reportagem e a investigação). O jornalismo moderno, com origem na época das Luzes, aquele que levou Hegel a dizer que a leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno, tinha uma função cultural e crítica, no sentido mais amplo: ele devia contribuir, em conjunto com outras instâncias, para a socialização da cultura e estar ao serviço da formação de uma opinião pública racional. Como é evidente, as condições actuais tanto do seu exercício como da sua difusão despotencializaram-no e deslocaram-no do campo onde ele se legitimou durante mais de dois séculos. Surgiu mesmo um mot-valise para designar esta junção, entretanto naturalizada, do jornalismo com o entretenimento: infotainment.

A par desta aglutinação que dá força ao inócuo e à irresponsabilidade, o campo jornalístico foi tomado por uma promíscua hifenização — o hífen de “político-mediático” — que sugere uma cumplicidade profissional e uma alternância de papéis entre os jornalistas e os políticos, pressupondo-se assim que ambos formam uma classe anfíbia: a classe político-jornalística. Esta anfibologia é um sinal de que se tornou urgente fazer aquilo que os media mais resistem a fazer, a autocrítica, e declarar que a profissão correu mal, uma conclusão que encontra hoje razões suficientes para ser anunciada, nem todas muito diferentes daquelas que levaram Karl Kraus, no princípio do século XX, com inigualável força satírica, a dizer que a imprensa era “a grande prostituta de Viena”. Notre métier a mal tourné é precisamente o título de um livro de dois jornalistas franceses, Philippe Cohen e Elisabeth Lay, publicado em 2008. Não abundam, no entanto, as críticas e os diagnósticos provenientes do interior. Se há actividades profissionais e económicas que apostam numa estratégia de menorização dos seus triunfos e preferem dar uma imagem de crise crónica, os media parecem acreditar que se protegem silenciando os males de que sofrem e omitindo os erros que cometem. Fazem-no umas vezes por arrogância e outras por temerem perder o capital de que mais necessitam: a confiança. De acordo com esta tendência para o fechamento à exposição pública dos seus erros e fraquezas, a regra quase sempre seguida consiste em exaltar demagogicamente os sucessos e esconder com cuidado os problemas e os falhanços.

Quanto à anfibologia acima mencionada, o trânsito dos cargos de poder político para os cargos de poder mediático e vice-versa, o panorama dos media, em Portugal, oferece um exemplo extremo, de proporções inigualáveis. Este facto contribui de maneira considerável para a obesidade da “opinião” e do “comentário” políticos de que sofre o jornalismo actualmente. A fragilidade do jornalismo (tanto do ponto de vista económico como editorial) pode ser medida, entre outros critérios, pelo nível de permeabilidade ao poder político. Quer os políticos em trânsito de um campo para outro, ocupando todas as “plataformas”, quer a oligarquia formada no interior dos media por via de um funcionamento altamente competitivo para chegar ao topo da hierarquia, onde se conquista o poder de assinar artigos de opinião ou ser autor de um programa, ambos são responsáveis por um jornalismo a que podemos chamar “​editorialismo”​.

O jornalismo editorialista, governado pelos editocratas (um neologismo surgido em França há alguns anos e que serviu de título a um livro colectivo), anula a função crítica do jornalismo e funciona segundo a lógica do entretenimento: promove a encenação de polémicas e debates que funcionam em circuito fechado, segundo uma tendência endogâmica, tautológica e mimética que atinge os cumes da exasperação quando há um acontecimento ou um assunto actual que polariza as atenções. Nesses momentos, impera um espírito de rebanho e o espaço mediático é varrido por uma onda avassaladora que cresce e desaparece. O jornalismo torna-se então uma caricatura, uma engrenagem autotélica que funciona para se alimentar a si própria, como o homeostato de Ashby. Alguém chamou a isto “comunicação autística”. Cria-se assim a ilusão — uma das maiores ilusões do nosso tempo — de que este jornalismo cria um espaço público alargado, próprio de uma sociedade transparente, quando na verdade a reduz na sua amplitude e no seu alcance.

O jornalismo e os seus efeitos de sombra poderiam constituir o capítulo de um tratado sobre as transformações do espaço público na época dos media digitais. O universo cultural e os mundos reais e possíveis de que o jornalismo se ausenta, por desconhecimento, por desinteresse ou por desistência, são enormes. E aqui a lei da concorrência funciona sempre ao contrário: não se trata nunca de procurar caminhos novos e de proceder a novas focalizações, o que é preciso sempre é fazer o que os outros fazem ou, se possível, antecipar o que já se sabe que os outros vão fazer. Esta regra é seguida com especial rigor nas áreas culturais, onde o jornalismo se acomodou à lógica das “audiências” e do “consumo cultural” que se confirmam e se alimentam a si próprios. Um círculo vicioso está assim criado, de modo a que tudo funcione para garantir que só se mostra o que já foi visto e só se produz o que já antes foi consumido.

Esta nova classe mediático-política (e devemos verificar que este nome hifenizado faz hoje parte das representações comuns e das hostilidades de uma vasta camada de cidadãos) colonizou o jornalismo. É ela que está hoje em condições de reivindicar o capital simbólico — e respectivas contrapartidas reais — conferido por esse métier que correu mal. Paralelamente, a classe profissional dos jornalistas perdeu poder e autonomia, foi proletarizada, reduzida a uma massa que trabalha para uma “indústria de conteúdos”, que é o ramo da actividade produtiva a que os media de massa se conformaram acriticamente.

Como se pode adivinhar, está assim criado um ambiente cheio de tensões: hoje, o mundo dos media é um mundo de desigualdades exacerbadas e de lutas de classes. De um lado, está a oligarquia editorialista que, grande parte dela, sendo exterior, não precisa de pensar o jornal onde escreve ou o canal de televisão onde faz comentário e só tem de se importar com o espaço onde intervém; do outro, estão os jornalistas que não podem deixar de ser responsáveis por um trabalho colectivo, para os quais há cada vez menos tempo, menos dinheiro, menos autonomia. Os primeiros, pelo menos uma boa parte deles, actualizam com grande verosimilhança a personagem de uma peça do escritor alemão Gustav Freytag, Os Jornalistas, de 1853. Essa personagem chama-se Schmock e vangloria-se da sua maleabilidade ética e política, da sua capacidade de servir com eficácia todas as tendências. A maleabilidade requerida hoje é outra e implica uma desenvoltura para fazer o trânsito completo por todo o universo mediático: dos meios escritos aos meios sonoros, dos meios sonoros aos meios visuais. E vice-versa, já que há sempre ida e volta nesta viagem.

Mas há também outra tensão ainda mais violenta que é preciso ter em conta para perceber o que se passa hoje nos media de vocação jornalística. A par da ascensão dos editocratas, dos agentes do editorialismo com que o jornalismo tende hoje a confundir-se, há a ascensão de uma oligarquia gestionária que tornou impossível separar direcções editoriais de administrações financeiras, de tal modo que os departamentos de recursos humanos das empresas de comunicação social tornaram-se adjuvantes pragmáticos das estratégias administrativas, baseadas num receituário universal e aplicadas por todo o lado da mesma maneira.

É evidente que isto é justificado pelos constrangimentos económicos e executado em nome da sobrevivência das empresas. Mas a questão que aqui nos interessa está para além das relações laborais. Na verdade, uma das transformações importantes do jornalismo e da paisagem mediática no último quarto de século, isto é, desde que começou o desenvolvimento, em grande escala, dos novos media digitais e os media tradicionais começaram a perder as bases sobre as quais estava edificada a dimensão comercial do sector, consistiu numa intervenção administrativa cada vez mais forte nas decisões editoriais.

A dança e circulação frenética de directores e editores, nas principais empresas de comunicação social (em todo o mundo e não apenas em Portugal), devem-se em grande parte ao facto de as funções directivas na esfera editorial terem perdido autonomia em relação aos órgãos de gestão administrativa. E isto não é um facto sem consequências: perante um público esclarecido e atento, o jornalismo entrou num processo de perda de legitimidade e tornou-se permeável a interesses que não são apenas político-ideológicos. O triunfo de um pragmatismo estrito — e afinal sem grandes resultados — em resposta aos desafios que os antigos media de massa hoje enfrentam e a obediência a um modelo que projecta o jornalismo, no sentido mais lato, ao serviço do cliente (e daí a deriva culturalmente populista dos media, mesmo daqueles que têm uma vocação mais elitista, e a cumplicidade com a indústria do entretenimento), retirou ao jornalismo a sua dimensão de projecto cultural. E é por esta ausência que ele se desmorona por todos os lados e se torna um instrumento de implosão e asfixia — e não de vitalidade — da chamada sociedade civil.

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