José Milhazes: “Os medos demoram séculos a sair da cabeça e da alma das pessoas”

O ex-correspondente do PÚBLICO em Moscovo publicou um livro que retrata a história dos avós da sua mulher, vítimas da violência nazi e da repressão soviética.

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José MIlhazes: "Seria importante que este livro chegasse aos jovens para que compreendessem que a História vai repetir-se" Daniel Rocha/PÚBLICO

Há décadas que José Milhazes, ex-correspondente do PÚBLICO em Moscovo, põe em livros as suas investigações que cruzam quase sempre a sua experiência pessoal durante os anos em que estudou e trabalhou na União Soviética (e os primeiros anos da Federação Russa) com a História. Desta vez, com Os Blumthal (Oficina do Livro), o jornalista foi mais longe e escolheu como objecto de estudo o passado trágico dos avós paternos da sua mulher, Siiri, natural da Estónia. Tudo começou com uma conversa inocente de família para acabar numa “vacina” para que não se repitam os erros do passado.

No livro conta que a investigação sobre a avó da sua mulher começou depois de uma conversa em família. Decidiram avançar de imediato para uma investigação?
Foi um processo bastante longo e pesado. A minha filha é formada em Relações Internacionais, mas interessa-se muito por História, e também pela história da família e começou ela própria a investigar. Escreveu para a Alemanha, para organizações ligadas às vítimas do nazismo. A minha mulher lembrava-se que a avó tinha estado num campo de concentração nazi, mas não imaginava que era o maior campo de nazi para mulheres.

A Estónia tem uma coisa muito boa: é um país de vanguarda em termos de informática e digitalização. Fizeram um trabalho enorme de digitalização e disponibilização na Internet de milhões de documentos da História do país, e quando soubemos qual era o verdadeiro apelido da avó, fomos conhecendo a história da família.

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O livro conta a história dos avós paternos da mulher de Milhazes DR

Quando é que foi tomada a decisão de avançar para a investigação e para o livro?
O trabalho foi parado várias vezes, porque à medida que apareciam documentos, e a minha mulher começava a lê-los, ela ficava completamente de boca aberta. Ela tinha as memórias dela mas não sabia tudo aquilo pelo qual tinham passado os familiares. A determinada altura dizia ‘eu não quero que este livro seja escrito’. Quase até ao momento em que o livro saiu.

Foi muito importante o apoio dos meus filhos, que me diziam ‘pai, escreve o livro, porque ele é muito necessário hoje’. Foi a principal razão para ela também aceitar. Ela compreendeu que este livro pode ser muito importante para que as gerações futuras o leiam e não deixem que a história se repita. Era um material tão forte e até dramaticamente didáctico que a minha mulher compreendeu que seria bom publicá-lo.

Os seus livros e investigações sempre tiveram como pano de fundo experiências pessoais ligadas à sua passagem pela União Soviética e aos laços entre a História russa e portuguesa. Mas desta vez os laços pessoais são ainda mais profundos. 
A mim já me perguntaram por que, tendo um material tão rico, não escrevi um romance. Isso ia matar a verdade, porque iria haver sempre uma parte inventada. Aqui só queria factos e não dar ao leitor a possibilidade [de pensar] que alguma coisa tenha sido romanceada. As personagens viveram assim, morreram assim, sofreram assim, e tomaram aquelas decisões. Decisões muito difíceis e que eu tenho muita dificuldade em condenar ou não condenar. Cada um deles tinha a sua razão para optar por um dos lados.

Outra pergunta que me fazem é porquê a Estónia, um país pequeno. A Estónia é um daqueles países europeus cuja história mostra exactamente o que é um povo pequeno que vive entre a Alemanha nazi e a União Soviética, e em que as pessoas tentam sobreviver, tomam várias posições: uns são vermelhos, outros são anti-soviéticos, outros são anti-nazis, outros vão para as tropas nazis. Todos querem o bem da sua pátria.

È isto que acontece dentro de muitas famílias, esta separação que destrói famílias. Não foi apenas o continente europeu que foi destruído por estas duas utopias. É por isso que pego em figuras que não são dirigentes máximos, são pessoas do dia-a-dia, que viviam numa situação trágica e onde muitas vezes se exigiam decisões rápidas.

A sensibilidade do tema obrigou a conduzir a investigação de forma diferente?
Eu tentei seguir a metodologia que costumo usar nos meus livros. Isto é um livro de História. Podia, por exemplo, ter deixado passar alguns factos, porque não eram tão abonatórios. Mas não. Isso iria matar uma parte do personagem.

Alguns dos personagens do livro foram vítimas, mas antes participaram em repressões. Eu acabaria por fazer um romance cor-de-rosa. Até porque há elementos onde se poderia acrescentar alguma beleza, como o romance amoroso entre a avó e o avô da minha mulher. Mas optei por não fazer isso e segui o rigor histórico.

Houve um cuidado especial para não fazer juízos de valor sobre as decisões das personagens?
Claro. As pessoas optam por causa de certas razões. Naquela altura, iam para o Partido Comunista porque trabalhavam muito e ganhavam pouco. Tinham más condições de vida. Eu fui militante comunista e filiei-me conscientemente, ninguém me empurrou. O que é mais trágico é que esta gente entra num sistema que começa a auto-destruir os próprios comunistas.

Por outro lado, essas pessoas foram heróis na luta contra o nazismo. Por exemplo, a bisavó da minha mulher, que foi assassinada pelos nazis, e a irmã mais velha [da avó de Siiri] também. Também se lhes deve prestar homenagem porque houve coragem. Eu não condeno essas pessoas. Seria importante que este livro chegasse aos jovens para que compreendessem que, num momento em que renascem na Europa e no mundo essas utopias, a História vai repetir-se.

Não há fórmulas suaves, vai acabar no mesmo, na repressão. Daí que é importante que as pessoas sintam que a Europa que temos, com todos os seus erros e problemas, é melhor ser conservada e desenvolvida do que nos metermos outra vez em construções que irão pôr em perigo milhões de vida.

Qual é que diria que é a influência das histórias familiares para a forma como hoje as sociedades dos Estados que fizeram parte da União Soviética encaram momentos históricos como, por exemplo, a Revolução de Outubro, o terror estalinista ou a II Guerra Mundial?
No caso da minha mulher essa experiência foi muito grande, não foi só da parte dos avós paternos, houve também outros parentes que foram mandados para a Sibéria, um deles com seis anos. E claro que isso influencia. Este tipo de contactos ajuda-nos a perceber o porquê das pessoas defenderem umas ideias ou outras. Por que é que a Estónia quis ser independente e quer ser membro da NATO? Porque receia que a Rússia venha outra vez.

Esse efeito das pequenas histórias familiares é tão grande que pode influenciar a política de um Estado?
Claro. As chagas ainda estão abertas. Há muita desconfiança, e principalmente quando se trata de países pequenos, que têm a preocupação de se tentar defender. Às vezes até são medos infundados, mas esses medos vivem dentro das pessoas. Têm medo que se repita, que sejam mandados outra vez para a Sibéria ou para campos de concentração.

Mesmo que hoje o mundo seja outro.
O mundo é outro para aqueles que não querem ver que as coisas se podem repetir. Efectivamente, vivemos hoje noutro mundo, muito melhor do que aquele que está retratado no meu livro. A questão é que os medos demoram séculos a sair da cabeça e da alma das pessoas. As pessoas ouviram os avós...

A mãe e o pai da minha mulher eram vivos durante a II Guerra Mundial e lembram-se dos bombardeamentos, das fugas. E foi essa memória viva que levou os estónios a exigirem novamente a independência do país, e que hoje os leva a terem receio da Rússia.

Nós vivemos no país mais santo do mundo e para nós torna-se difícil imaginar situações tão tenebrosas. Mas em termos de focos potenciais, temos um ao nosso lado, em Espanha. O que significaria para Portugal a desintegração de Espanha? Os espanhóis ainda têm a memória da Guerra Civil. É importante que se conserve a memória, porque é uma espécie de vacina. Só que a vacina não é eterna e neste momento está a perder o efeito, esse é que é o grande problema.

Inicia o livro com as reminiscências da sua mulher sobre a avó, tudo aquilo que ela sabia sobre ela antes de começar a investigação. Saltam à vista os pormenores soltos, sem explicação, as histórias por contar, as perguntas por fazer. Este tipo de ocultação é comum nas famílias que passaram pela União Soviética?
Sim. As pessoas não podiam dizer o que pensavam e o que sentiam. Muitas vezes tinham que esconder. Havia coisas que só se contavam em casa. Na escola dizia-se uma coisa e os pais diziam ‘isso é tudo treta, não acredites’. Dei muito conta disso.

Conheço a Estónia desde 1982, e encontrei muito esse tipo de comportamento: pessoas que tinham um discurso quando estavam a falar com outros e depois tinham outro discurso quando estavam a falar com os seus. Na cabeça das pessoas isto era algo terrível. Mantêm-se alguns traços ainda hoje. Primeiro porque há muita gente que se lembra do período soviético. Os tais medos continuam lá dentro. Os jovens, se calhar já não têm tanto esses medos. A geração que viveu como adulta a União Soviética, que viu o sistema por dentro, continua a termedo que as coisas possam voltar atrás.

E o melhor é não falar?
Não é que o melhor seja não falar. O melhor é prevenir. Quando a Rússia invadiu a Crimeia em 2014, os estónios ficaram a pensar que poderiam ser invadidos. Alguns optimistas falavam do artigo 5 do tratado da NATO [a garantia de segurança mútua em caso de ataque a um Estado-membro]. Mas outros diziam que pode aparecer um outro tratado Ribbentrop-Molotov [aliança entre a Alemanha nazi e a União Soviética durante a II Guerra Mundial, que definia uma divisão da Europa entre as duas potências]. Isso é algo que está presente e ainda vai levar muito tempo a sarar, pode levar duas, três gerações. Isto, se as coisas correrem bem, se a União Europeia não se desintegrar e começar a haver guerras no continente.

Escreve que uma das razões para avançar com o livro foi a “actual situação no mundo”. O que é que tem em mente, em termos concretos?
Os populismos que venceram no século XX, nomeadamente o nazismo e o comunismo. Basta olhar para a Europa e ver o que acontece com a extrema-direita.

Em Portugal, não é esse o problema. Temos uma extrema-esquerda forte porque não temos extrema-direita. Mas estes extremos, nestas situações de crise, aparecem como salvadores e há muitas pessoas que vão atrás. Em França, o caso mais paradigmático é a Marine Le Pen, mas o que pode acontecer se Macron falhar é que volte a aparecer uma extrema-esquerda também forte. Estamos a ver partidos neo-nazis com cada vez mais influência na Europa, como na Alemanha. 

O remédio para isso é recordar a História?
Temos que conversar e que discutir. Quando há uma degradação clara dos valores políticos, a UE corre o risco de se desintegrar, temos que discutir como vamos solucionar estes problemas sem ter que recorrer a ‘salvadores’. Isso só pode acontecer através do aperfeiçoamento da própria Europa e das suas instituições.

O reaparecimento desses ‘amanhãs que cantam’ mostra que alguma coisa está mal, e muito mal, na UE. O que deveria levar os dirigentes europeus a olharem para a História e dizer ‘ou tomamos medidas a sério ou então...’. Um dos factores preocupantes é a degradação da elite política europeia e mundial. Lenine dizia que até uma cozinheira podia dirigir um Estado. E nós começamos a ver que grandes potências não são dirigidas por cozinheiras, mas as cozinheiras são melhores que esses dirigentes.

Não é contraditório que a carga histórica, por um lado, faça países como a Estónia terem tanto receio da Rússia, mas, por outro, no resto da Europa a memória não esteja assim tão presente quando se fala dos tais populismos?
A Europa viveu um grande período de paz e a maioria dos europeus dá a paz como eterna. É isso que não deve acontecer. Temos que trabalhar para que a paz se mantenha. É por isso que, ou a UE se reforça e se vira para os cidadãos, ou então vamos ter problemas, porque a desintegração da Europa vai provocar guerras.

Mas por que é que a tal vacina da História funciona quando se trata da Rússia e não quando se trata destes partidos populistas?
A Guerra Fria continua. As pessoas têm a memória histórica muito curta, aquilo que acontece com os outros nunca acontece connosco. É uma questão de olharmos um pouco para a frente, que é coisa que os nossos políticos não fazem. Eles olham para os próximos quatro anos para ganhar eleições. Isto é perigoso. São precisos pactos de regime entre os principais partidos para definir as linhas mestras cuja realização será muito mais longa do que os quatro anos que um partido está no poder. A opção europeia, por exemplo, tem de ser de longo prazo. Não se pode estar a fazer referendos de quatro em quatro anos.

Percebe-se que Leida deixa de acreditar no ideal oferecido pelo comunismo depois de várias decepções. Acredita que há semelhanças com aquilo que também lhe aconteceu, apesar de ser numa época e em circunstâncias diferentes?
Há um traço comum. Mas no meu caso essa desilusão acontece não só em relação ao comunismo, mas também às receitas que são empregues para resolver os problemas do mundo de hoje. É mais amplo. Se fosse só esquecer o comunismo não havia grandes problemas.

Mas é também o descontentamento ao olhar-se para o nosso país e dizer ‘o país podia ser muito melhor’. Como cidadão, começo a ficar desiludido com determinados partidos políticos, ou determinadas correntes, que outrora foram importantes para a Europa, que criaram a Europa social – estou a falar da social-democracia, da democracia cristã – que hoje nada têm a ver com o que existia antes. Isso também é preocupante e frustrante. Olha-se e não se vê uma saída, e isso leva-me a recear que os falsos profetas cheguem ao poder e que a História se repita.

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