Se todas as despedidas fossem como a de Joan Baez, não cansaria dizer adeus

No único concerto em Portugal da sua longa digressão de despedida, Joan Baez mostrou-se altiva e enérgica, a lidar como nunca com as limitações naturais da voz. Um portento.

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Joan Baez no Coliseu de Lisboa NUNO FERREIRA MONTEIRO

Em 2018, aos 77 anos, Joan Baez acrescentou um novo disco (Whistle Down The Wind) à sua longa discografia e iniciou uma digressão mundial de despedida dos palcos a que chamou Fare Thee Well Tour e que deverá, pelo que tem sido dito, prosseguir até 2020. E essa digressão é intensa, não suave. Só em 2018, entre Março e Novembro, ela deu 84 concertos na Europa e nos Estados Unidos (no Olympia de Paris teve até uma temporada de dez concertos consecutivos, de 4 a 17 de Junho). Intervalando em Dezembro e Janeiro, o primeiro concerto de 2019 deu-o em Portugal, no Coliseu dos Recreios. E, ao contrário do que sucedera em 2010 e 2015, quando por cá se apresentou, não foi sequer ao Porto porque tinha, logo a seguir (3, 4 e 5 de Fevereiro), três noites reservadas no Olympia.

O que difere, essencialmente, nesta Fare Thee Well Tour, para além de se afirmar como derradeira (deixando as digressões antes dos 80 anos), é a pose e o empenho. Melhor do que a víramos em 2010, no mesmo Coliseu, há nela uma inesperada jovialidade que se espelha na forma como lida com o envelhecimento natural da voz. Em lugar de surgir, ali, como uma cantora idosa numa despedida a contragosto, Joan Baez mostra-se altiva e enérgica, como se não lhe pesassem mais do que duas décadas de carreira (e na verdade já lá vão 6 décadas, feitas agora, desde a sua primeira actuação regular em clubes folk).

Vestida sobriamente, de azul-escuro, sem os panos ou lenços coloridos de outros anos, Joan começou por saudar Portugal e o público português antes de se lançar à primeira das 23 canções que ouviríamos na noite. Com ela, sempre a acompanhar-se à guitarra, os companheiros habituais destas viagens: Dirk Powell (bandolim, banjo, violino, baixo, guitarras), o seu filho Gabriel Harris (bateria e percussões) e a jovem cantora Grace Stumberg (voz).

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NUNO FERREIRA MONTEIRO

Começou com Dylan, que ela enalteceria mais tarde (dizendo que o cantava muito porque “ele é o melhor”), e assim ouvimos Don’t think twice, It’s allright, que podia ser também uma forma de designar esta digressão de despedida. There but for fortune, de Phil Ochs, trouxe-nos a sombra das misérias do mundo e a declaração de que, no meio delas, Baez é uma afortunada (“I’m the lucky one”, comentou). Farewell Angelina (ainda Dylan), abriu caminho a duas canções do novo álbum, Whistle down the wind (de Kathleen Brennan e Tom Waits) e Silver blade (Josh Ritter), onde a violência exercida sobre uma mulher tem um desfecho inesperado, virando-se depois a faca contra o agressor e aniquilando-o.

It ain’t me babe (Dylan) antecedeu Deportee (plane wreck at Los Gatos), que Woody Guthrie compôs com Martin Hoffman após um acidente aéreo em 1948 onde imigrantes mexicanos que iam a bordo sofreram maus tratos das autoridades americanas, antes e depois do acidente (“não serão tratados pelos vossos nomes quando forem no grande avião, chamar-vos-ão apenas deportados”); uma lembrança actual, com o muro de Trump por “cenário”. Vieram depois Diamonds & rust (escrita por Baez) e duas canções de Kris Kristofferson, Me & Bobby McGee (mais inspirada na poderosa versão que dela fez Janis Joplin do que na do próprio autor, e aqui Grace Stumberg teve direito a um notável solo) e Hello in there. Another world (de Antony Hegarty) antecedeu, e bem, a Grândola vila morena de José Afonso, que ela se habituou a cantar (é a única canção portuguesa que decorou, diz sempre), embora não na íntegra.

Depois da celebração do povo e dos seus poderes, um aviso para maus tempos que virão: A hard rain's a-gonna fall (Dylan). E a recordação de Obama em The President sang Amazing Grace. Por fim, uma sequência heterogénea: Donna, donna (Aaron Zeitlin e Arthur Kevess), Joe Hill (Phil Ochs), House of the rising sun (Tim Hardin), Darling Corey (numa evocação de Pete Seeger) e Gracias a la vida (Violeta Parra). Nos dois encores, exigidos a muitos aplausos, ouvimos primeiro Imagine (de John Lennon), com Baez a tornar plural o que designava singular (“you may say we are dreamers”) e Here’s to you (escrita por ela em memória de Sacco e Vanzetti).

A fechar, Forever young (Dylan, de novo) e The boxer (de Simon & Garfunkel). À insistência do público para que continuasse, respondeu Baez com as mãos juntas, a apoiar o rosto inclinado, como se dissesse: eu vou dormir, vocês também. Se todas as despedidas fossem como esta, de Joan Baez, não cansaria dizer adeus. Vimos e ouvimos uma cantora pacificada com a voz, a manter o essencial do antigo timbre em soluções vocais de invulgar acerto e extremo bom gosto. Vimos, em suma, o que fazem 60 anos de canções e palcos quando se consegue, com sabedoria, evitar a sombra da decadência.

As palavras de Dylan em Forever young, quase uma oração, podiam ser para ela: “Que Deus te abençoe e guarde sempre/ Que todos os teus desejos se tornem realidade/ Que cuides sempre de outros/ E deixes outros cuidar de ti/ Que construas uma escada para as estrelas/ E subas cada um dos degraus/ Que fiques para sempre jovem.” E ficará.

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