Arcos de Valdevez, uma porta para o barroco e para o Alto Minho
Foi “onde Portugal se fez”, diz o slogan de Arcos de Valdevez. É onde agora se procura resgatar o estilo barroco num território onde a quantidade não abunda, mas a qualidade tem momentos interessantes. Como na Igreja do Espírito Santo, feita Centro de Interpretação do Barroco.
Ester Campos anda a ver coisas que antes lhe haviam passado despercebidas.
- Nunca tinha visto estes púlpitos.
- Mas já estavam.
- E as paredes, tão brancas... Então, as minhas bodas de ouro foram aqui, conheço bem a igreja. Mas há quatro anos que não entrava aqui...
Nuno Soares é o interlocutor – e não podia ser melhor. Afinal, o arqueólogo, chefe da Divisão de Desenvolvimento Sociocultural e director da Casa das Artes de Arcos de Valdevez, conhece bem a transformação da Igreja do Espírito Santo nos últimos anos, acompanhou-a. Estava a caminho de ser ruína.
- Eu costumava vir aqui à missa, moro aqui perto. Mas, realmente, estava muito má. Lembro-me de uma missa, ainda com o senhor padre João. Um homem começou a dizer “isto não tem jeito nenhum, está tudo a cair, vou mandar fazer obras”.
Agora brilha tanto que Ester Campos não consegue conter a sua surpresa.
- E foi à sacristia?
- Olhe, também mandei rezar aqui uma missa pela minha mãe e fui lá pagar. Era bonita, até o disse ao padre João. Mas nunca tinha visto as imagens.
Estamos bem no extremo do promontório sobre o rio Vez, na Igreja do Espírito Santo, é verdade; mas estamos também no novíssimo Centro Interpretativo do Barroco (CIB). E embora o título oficial seja, por agora, apenas este, podemos dizer que é uma porta para o barroco no Alto Minho. Afinal, este CIB é também a primeira das “estações do tempo” que a Comunidade Intermunicipal (CIM) do Alto Minho está a promover para promover e dinamizar o património histórico e cultural da região – dez concelhos, dez estações (ou seja, centros interpretativos), dez percursos de visita.
Em Arcos de Valdevez, a porta cronológica abre-se para o barroco “não pela quantidade, mas pela qualidade”, sublinha Nuno Soares (ainda que a quantidade não seja displicente: este é o maior concelho da região). E, sendo este um estilo artístico que surgiu nos países católicos como resposta à reforma protestante, não surpreende que seja nos edifícios religiosos que o barroco marca mais o “gosto” da época. São igrejas, capelas e santuários a grande maioria dos 40 pontos de visita identificados para esta Rota do Barroco do Alto Minho (possível embrião para uma rota para o Norte do país), muitos deles produto do afã de várias confrarias que se foram instalando na zona – sobra quase uma mão cheia de casas senhoriais numa região muito ligada a elas (a antiga nobreza portuguesa tem raízes profundas nesta região Entre-Douro-e-Minho).
Entremos, então, na Igreja do Espírito Santo feita CIB – ainda se mantêm três momentos religiosos por ano, que em 2019 serão quatro,
- A 2 de Fevereiro há bênção do bispo,
como dona Ester já sabe. Mas este que é provavelmente um dos mais icónicos representantes da arte barroca no Alto Minho adoptou quase completamente a nova roupa de centro interpretativo e de espaço cultural (a inauguração, a 15 de Dezembro, contou com um concerto de piano do maestro Rui Massena – “a acústica é extraordinária”, nota Nuno Soares – e outros momentos já estão programados). As “homilias” agora são de história e o “sacerdote” é um putto, um “anjinho barroco” – mais apropriado não poderia ser, eles estão por todo o lado, na decoração, talha dourada abundante como marca do esplendor barroco português (servido pela bonança do ouro brasileiro); contudo, este de que falamos é virtual, um holograma, Asinhas de seu nome.
E já iremos a ele, a imagem de marca desta igreja-centro-interpretativo que está servida da tecnologia mais recente para nos levar ao passado. É ela que nos pode levar por toda a rota – literalmente, fazendo uso da app ou de QR Codes, que permitem a qualquer visitante lançar-se no território com “guia”; ou virtualmente, no ecrã gigante que quase nos recebe. Mapa interactivo, podemos descobrir todos os pontos aqui, ler uma nota introdutória, abrir para mais informação, ver fotografias (incluindo 360º) e as direcções, saber a distância e o tempo de viagem. Do outro lado, outros três ecrãs, mais pequenos, cada qual fazendo o enquadramento do barroco em três vertentes (sempre acompanhadas por cronograma, por vezes com elementos multimédia): a sociedade e o pensamento, a cultura e a arte e o próprio monumento onde nos encontramos, imóvel de interesse público.
Para explorar a igreja do Espírito Santo, quem chega tem à sua disposição tablets (25) e óculos de realidade aumentada (HoloLens, dois pares apenas, “são caríssimos”, cinco mil euros cada) que vão debitando o conteúdo de forma moderada e sucinta. Com um ou outro, os círculos dourados no chão marcam o X: é daí que podemos apontar o tablet ou o nosso olhar (se estamos com os óculos) para os vários elementos da igreja que vão surgir com um ponto branco e deixar que o Asinhas se aproxime de nós e descreva o que vemos (que também surge em texto). Uma das experiências mais interessantes é ver o retábulo-mor erguer-se diante dos nossos olhos, peça a peça, mas dona Ester ignora a sugestão de Nuno Soares para experimentar. Nem os funcionários da Edigma, a empresa responsável pela tecnologia, que circulam ora de tablet ora de óculos fazendo updates ao sistema, lhe suscitam curiosidade. Está sem tempo, diz, mas não resiste a comparações.
- A [Igreja] matriz é bonita, mas não tão bonita... Bem, cada uma tem o seu encanto, a sua beleza.
Vamos descobri-lo na Rota do Barroco que não sai de Arcos de Valdevez, “onde Portugal se fez”, diz o slogan da vila. Quatro igrejas, um solar e a porta aberta para o resto do Alto Minho – barroco.
Igreja do Espírito Santo
Fixemo-nos, então, finalmente “apenas” na beleza da Igreja do Espírito Santo, concluída em 1681 (mas com a frontaria neoclássica do século XIX), considerada um dos tesouros do barroco português, brilhante no branco das suas paredes. Há uma certa austeridade que não esperávamos num templo barroco, acentuada pelo granito que debrua interior e exterior, mas perceberemos que é o melhor cenário para fazer resplandecer a talha dourada, que reveste retábulos, altares e púlpitos, e as pinturas – entre estes, alguns dos melhores exemplares de arte portuguesa barroca. O restauro das peças foi minimalista, “tirar lixo, limpar bichos, estabilizar”, nada foi acrescentado – surpreendemo-nos com as pinturas, cores vivas: “Ninguém as tinha tocado, são pintadas directamente na madeira. Os artistas são locais, são básicas, populares, mas muito bonitas”, nota Nuno Soares.
Os púlpitos são de uma majestade elegante, os altares devidamente ornamentados, mas é o retábulo-mor que concentra, inevitavelmente, a atenção no templo de apenas uma nave encabeçada pela capela-mor (uma torre sineira ergue-se adossada à fachada principal), exemplo da tradição arquitectónica maneirista (a transição entre o Renascimento e o Barroco): imponência dourada em trabalho escultórico meândrico, cheio de curvas e ilusões. “É um dos melhores a nível nacional”, conta Nuno Soares. E é raro ter chegado até hoje quase intocado. “Em toda a estrutura houve apenas uma modificação, na zona do sacrário”, continua, “o original tinha um Pentecostes tridimensional”. Este pode ser visto na sacristia (uma intensidade ingénua nas figuras onde o Espírito Santo é representado como línguas de fogo), num nicho por cima do arcaz de pau preto, do lado oposto ao que resta das cadeiras do cabido, trazidas do coro alto – o espaldar é tratado como se fora um biombo, com arte chinoise retratando cenas frívolas (namorados, caçadores), numa moldura onde os putti abundam – eles estão por todo o lado, não só na realidade aumentada.
Igreja Matriz
Quase cem anos separam a Igreja do Espírito Santo e a Matriz (São Salvador), quase lado a lado – entre elas, o Jardim dos Centenários, uma varanda sobre o rio, a praia fluvial e, na outra margem, o Solar do Requeijo (não está na rota, mas poderia estar: neste momento, aguarda a sua conversão num hotel boutique). De origem medieval, a Matriz sofreu obras ao longo de várias décadas até o final do século XVIII, quando o barroco já se aproximava do seu final, o grande bang que foi o rococó. Este está plasmado no templo, nas capelas laterais, sobretudo na do Calvário, do lado da Epístola. Concentrado de talha dourada, que começa na abóbada de caixotão, explode no altar, uma peça apenas, feito de colunas torças (espiraladas, a simular movimento e dramatismo tão caros ao barroco) que emolduram o sacrário, ele próprio com miniaturas das mesmas colunas, profusão de anjos, folhas, cachos, num bordado intrincado – que se apazigua na Última Ceia esculpida no frontal de altar, ricamente pintada.
Esta capela é também especial vista do exterior, para onde abre um altar com uma representação de um calvário – “É algo muito da contra-reforma: se não entras na igreja, a igreja vem até ti”. Está normalmente fechada, porta chapeada na lateral do edifício feito de vários volumes que se foram anexando ao corpo principal – cruz latina para feições rectilíneas que se “agitam” quando se estendem à torre sineira, em pilastras com fogaréus no remate e frontão contracurvado. No interior, destaque ainda para a presença de uma porção de azulejos setecentistas originais e para o grande arco do triunfo dourado.
Igreja da Lapa
Desembocamos na fachada lateral da Igreja da Lapa com a certeza de que estamos a ver algo diferente – mesmo que não saibamos imediatamente o quê. Entramos pela porta principal, antes afastamo-nos para ter noção do espaço, porque esta igreja não respira, resvés que está com as ruas que a demarcam. “Tudo confluía aqui, tudo conflui aqui”, reflecte Nuno Soares – a vila medieval, a vila contemporânea. E, então, bem no centro de Arcos de Valdevez, onde o espaço já em meados do século XVIII (data aproximada da sua construção) não abundava, ergue-se a Igreja da Lapa pequena e de uma graciosidade que parece mantida pela sua insustentável leveza.
Esta sensação tê-la-emos mais plenamente no interior do templo oval, encimado por uma cúpula, mas no exterior a volumetria desigual que se adapta aos condicionalismos do terreno (com, por exemplo, a torre sineira nas traseiras, junto à capela-mor, “como nos Clérigos”, sublinha Nuno Soares) já a faz pressentir. A luminosidade é espantosa – não só tem várias janelas e janelões, como é característica do barroco, como estes acompanham o movimento do dia: a luz entra de todos os pontos cardinais (e jorra lá do alto) – e e há mais espaços vazios do que na matriz. Talvez seja esta ausência e a presença de pilastras que sublima a decoração, onde abunda a policromia que aqui divide o protagonismo com o dourado na talha e simula, por exemplo, mármores. O trompe l’oleil é um recurso estilístico constante neste templo onde a capela-mor é minúscula e o altar mais “parece um órgão, mas a hierarquia está aqui toda”. “Só a escala é diferente”, assinala Nuno Soares. O aspecto ilusório condiz com os tiques cénicos do barroco.
Igreja da Misericórdia
O pequeno largo em torno do cruzeiro do século setecentista costuma encher-se no terceiro fim-de-semana de Setembro para a Romaria da Nossa Senhora da Porta. Esta está a mirar o espaço granítico do seu altar inusitado, por cima do pórtico da igreja. Dizem que na capela original, datada de 1595, a mesma da fundação da Irmandade da Misericórdia em Arcos de Valdevez, uma imagem da Senhora da Misericórdia ocupava um nicho sobre o portal. O povo começou a referir-se-lhe como senhora da Porta e, então, na reformulação a que a igreja foi sujeita no século XVIII – dado o avançado estado de degradação da sua sacristia, rezam as crónicas, os responsáveis decidiram não só recuperá-la como dar uma nova fachada à igreja: de uma assentada, o conjunto ganhou uma nova cara barroca (a “moda” da época) – abriu-se um altar no frontispício e obteve-se autorização para nele rezar missa. Com o retábulo de talha dourada, este altar, que surge em simetria total com o portal, é um dos indicadores mais óbvios do barroco do templo – “É um barroco mais clássico”, considera Nuno Soares –, cujo interior é claro, como que depurado, sobressaindo os tectos pintados e os retábulos brancos debruados a dourado (uma “simplicidade” mais ao gosto neoclássico). “Em termos de arte não é tão superlativo [quanto os anteriores]”, confessa Nuno Soares.
Casa da Ponte
Pertence ao roteiro do barroco e é propriedade privada. Aqui funciona um turismo rural mas, diz-nos Nuno Soares, as proprietárias normalmente permitem visitas. Não testamos a sua hospitalidade, ficamo-nos pela fachada do solar setecentista, comprida, à face da rua estreita, casas adossadas imediatamente antes. Não há grandes lampejos decorativos que exibam o seu berço barroco a olhares leigos como o nosso: as janelas do rés-do-chão (com gradeamento) replicam-se no primeiro andar, o piso nobre, em molduras de granito simples, sendo que a porta, elemento central no nível térreo, é substituída por uma pequena varanda no nível superior. É neste seguimento vertical que a fachada tem a sua excentricidade, uma espécie de frontão ogival, onde sobressai o brasão, de tamanho respeitável.
É considerado um exemplar comum das casas do Norte do país no século XVIII – em ambiente urbano (o que significa, por exemplo, que a escadaria, por constrangimentos de espaço, se encontra no interior).