O resgate de São Vicente, desta vez ao esquecimento
Um dos mais maltratados santos do panteão lisboeta é celebrado numa exposição sobretudo contemporânea, para mostrar que o mito está vivo. E recomenda-se.
Ele está em toda a parte. Às vezes numa pequena barca, periclitante, com dois passarões em cada lado. Outras vezes numa grande caravela, com mastros e canhões, uns corvos modestos que passam quase despercebidos. Está nos candeeiros da cidade, nas tampas de esgoto, em algumas paredes de prédios, em inúmeras salas dos Paços do Concelho, em qualquer folheto, cartaz ou publicação da câmara de Lisboa, na sua bandeira, em azulejos, na calçada portuguesa, em chafarizes.
A barca de São Vicente é talvez o símbolo mais presente no espaço público lisboeta e, ao mesmo tempo, o mais invisível. Que dizer do próprio santo, quase votado ao total esquecimento por se ter imposto, por caminhos insondáveis, a devoção a Santo António?
Vicente. O mito em Lisboa, exposição que esta sexta-feira inaugura no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, aí está para nos lembrar como essa figura, hoje obscura, foi fundamental para a pacificação da cidade e consequente consolidação do recém-nascido reino português. Já lá vamos. Antes, um aviso de Mário Caeiro, comissário da exposição: as pessoas que a visitarem “vão sair com uma imagem do santo perfeitamente contemporânea”.
Porque, para lá do homem tornado santo, Vicente ficou em Lisboa de muitas formas. “O símbolo é muito forte, a narrativa perdeu-se. Não queremos uma personificação do mito. Este não é um santo normal, tem nuances filosóficas”, continua Mário Caeiro. Entre 2011 e 2018, o projecto Travessa da Ermida, de que faz parte, expôs arte pública com Vicente como tema. O que está agora no Palácio Pimenta, no Campo Grande, é “uma espécie de best of” desses anos, em que artistas de diferentes técnicas e expressões trabalharam sobre as “virtualidades contemporâneas de uma lenda”, como anuncia o jornal que acompanha a exposição.
Às peças actuais juntam-se algumas das colecções do Museu de Lisboa, que funcionam como “uma máquina do tempo” e permitem “regressar às origens da cidade quando o corpo do santo chegou”, explica Paulo Almeida Fernandes, coordenador do Palácio Pimenta.
A história é bem contada por vários olisipógrafos, mas cite-se José Sarmento de Matos (recentemente falecido e homenageado no jornal), que no primeiro volume de A Invenção de Lisboa relata detalhadamente como os cristãos que já viviam em Lisboa durante a presença muçulmana encararam com desagrado a chegada dos cruzados, em 1147, e a imposição de dois santos ingleses (São Crispim e São Crispiniano) como padroeiros da cidade.
Organizou-se então uma expedição secreta a Sagres, onde os restos mortais do santo, martirizado em Valência de forma particularmente macabra havia quase 900 anos, estavam depositados para não caírem em mãos islâmicas. O corpo de Vicente foi transportado de barco até Lisboa, levado para a igreja de Santa Justa e, depois, em procissão solene pelas ruas da cidade até à Sé, ainda em construção. D. Afonso Henriques conseguiu tréguas com os lisboetas, o reino ganhou de vez uma porta atlântica e mediterrânica fulcral para a sua sobrevivência.
Voltemos a 2019 e ao Palácio Pimenta, onde o percurso expositivo começa na estufa, onde está instalado um “templo pagão”, nas palavras de Paulo Fernandes. Daí segue-se pelo relvado, se os pavões deixarem, até ao Pavilhão Preto, transformado numa “cidade medieval” com oito ermidas, obra dos arquitectos Carlos Lampreia e Ana Neiva. Logo na primeira se poderão ver dois tesouros do Museu de Lisboa, as peças mais antigas: uma imagem de São Vicente e um baixo-relevo do século XVI que pertenceu ao Chafariz de Arroios.
“Este é um diálogo enriquecedor”, comenta Paulo já na sala seguinte, onde começam a surgir as peças contemporâneas. Em cada ermida expõe-se “o sagrado de cada artista”, diz Mário. “Cada espaço torna-se imersivo”, mostra um Vicente nas suas múltiplas vertentes – mito, ícone, corpo, lugar, ser – e espelha ainda “a internacionalidade do santo”, explica o comissário.
Associado à exposição está um ciclo de conversas e visitas guiadas, a começar a 7 de Fevereiro, e ainda o lançamento de um livro, VICENTE. Símbolo de Lisboa. Mito Contemporâneo (16 de Março), que Mário Caeiro diz funcionar como “um mapa para qualquer pessoa interessada em conhecer a loucura de perspectivas que existem sobre o santo”.
“Não havia uma exposição sobre São Vicente desde 2004 e antes tinha havido uma em 1973”, refere Paulo Fernandes. Esta, acredita Mário, “vai aproximar as pessoas do seu símbolo”, revelando as ligações a Sagres, à iconografia ibérica, à Costa Vicentina, à Torre de Belém… E a coisas intangíveis, do dia-a-dia. Afinal, Vicente foi o 14º nome mais popular entre os rapazes nascidos em Portugal no ano passado. “É subliminar, está debaixo da pele”, observa Paulo Fernandes, já à saída.
Na alameda de regresso ao palácio, comissário da exposição e coordenador do pólo entretêm-se a discutir porque é que Santo António se tornou tão mais querido dos lisboetas do que São Vicente. “Nasceu em Lisboa, foi o segundo da hierarquia franciscana”, arriscam. Mas a imagem que nos chegou de António é bem diferente, aliás muito distante da realidade. “A dimensão de religião popular dá uma vantagem a Santo António face a São Vicente”, reconhece Paulo. Isso não significa que este não mereça ser lembrado – e celebrado, como agora se propõe.