A lenta coreografia do regresso de Carlos Bunga

The Architecture of Life, Environments, Sculptures, Paintings and Films é mais do que uma mera retrospectiva de Carlos Bunga. Trata-se de um encontro com os diferentes prismas da obra deste artista que nunca deixou de ser sensível à a temporalidade das coisas e da vida. E, portanto, da própria arte.

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Uma ideia de regresso emerge, discreta, modesta, no início da exposição que Carlos Bunga (Porto, 1976) apresenta no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, em Lisboa. Um regresso a casa, simbólico e literal, com a presença de uma maqueta, em papel vegetal sobre cartão. Trata-se de uma peça intitulada Casa Nº 17, realizada em 2012. É partir dela que a retrospectiva The Architecture of Life, Environments, Sculptures, Paintings and Films avança, reconstruindo um trajecto e dando a ver uma extensa profusão de obras.

Esculturas, peças de parede e de chão, vídeos, pinturas, ambientes. O itinerário concebido pela curadora da exposição, a crítica de arte inglesa Iwona Maria Blazwick, é feito com escalas e materiais distintos, quase contrários. Há momentos que descemos o olhar sobre peças de pequenas dimensões, outros, em que pelo contrário, levantamo-lo no interior de construções que nos envolvem com as suas cores e volumes. Numa parede, vemos objectos banais (folhas de papel, embalagens, caixas, sacos) que o artista reparou, coseu, sem esconder as suas cicatrizes. Num filme, somos confrontados com uma construção que não sobreviveu a uma intempérie. O apelo ao épico convive com o quotidiano, a construção com a destruição, a efemeridade com o desejo de permanência ou segurança.

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Conceitos vão surgindo do espaço que separa estas dicotomias, contaminando-as, destabilizando-as: arquitectura, casa, fragilidade, vida, viagem. Ao fim de uma visita guiada no museu, numa manhã fria de segunda-feira, Carlos Bunga reflecte sobre o significado da exposição: “Fiz muitas coisas fora de Portugal que permaneceram desconhecidas. E quis mostrá-las, para a que as pessoas pudessem ver o modo como o trabalho se foi desenvolvendo ao longo destes anos. Muitas das minhas exposições em Portugal corresponderam as instalações. Desta vez, procurei proporcionar um olhar feito de várias perspectivas acerca do meu trabalho. Da micro à macro escala, do lado minimal ao mais visceral. Uma coreografia entre o chão e parede, com alturas e superfícies diferentes. Como a vida. Por isso, começo com uma maqueta da casa de habitação social em que vivi na Lourinhã e que foi demolida”.

Um artista em viagem

Carlos Bunga saiu de Portugal em 2005, decisão que, vista retrospectivamente, considerou a mais acertada, embora nem por isso isenta de dúvidas ou obstáculos. Tudo começou no último ano do curso na Escola Superior de Artes e Design, nas Caldas da Rainha. “A Ana Pinto, que era professora, convidou vários profissionais das artes a ir à escola, a falar com alunos e ver os nossos trabalhos”, recorda. “Nesse grupo, estavam João Pinharanda e Nuno Faria, entre outros. Acabei seleccionado por eles para participar na exposição Prémio EDP Novos Artistas 2003, no Museu de Serralves”. Bunga foi eleito o vencedor (Maria Lusitano Santos seria distinguida com uma menção honrosa) por um júri onde constava a curadora e teórica de arte americana Marta Kuzman, que se revelaria fundamental na biografia do artista.

“No ano seguinte, ela estava a organizar a Manifesta 5, em San Sebastian e convidou-me e à Maria Lusitano. Era um evento internacional e fiz uma construção enorme, um ambiente interior que destruí numa performance”. Este momento, documentado em vídeos na exposição, tornar-se-ia fundacional em termos artísticos. Daí em diante, três aspectos viram a descrever, a tocar a obra de Carlos Bunga: o interesse na transformação de arquitecturas preexistentes, o acentuar da temporalidade das coisas, a sensibilidade cubista à multiplicidade da perspectivas que, face ao mundo, a arte faz aparecer. Encontramo-los traduzidos numa das peças realizadas propositadamente para a exposição: Polychromatic Environment, em que sobre cartão pintado, a luz refractada amplia, antes de estilhaçar, o espaço em ângulos, sombras e perspectivas. Mas voltemos a San Sebastian e à Manifesta 5. Uma das espectadoras da performance de Carlos Bunga foi a galerista espanhola Elba Benítez, que entusiasmada com o que viu não mais deixou de apoiar, com bolsas e residências, o artista português. “Isso permitiu-me arriscar mais, experimentar, conhecer pessoas, fazer uma viagem nómada por vários lugares e destinos. Por exemplo, conhecer Nova Iorque, quando participei numa exposição colectiva no Artists Space.  Nesse período, entre 2006 e 2008, encontrei uma cidade muito intensa, cheia de movimento, que me deixou e ainda deixa sempre inquieto. Tem uma dinâmica abismal”.

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É neste período que Carlos começa a desenhar, produzindo a série de desenhos Nómadas que pode ser vista na Fundação Carmona e Costa, numa curadoria de Inês Grosso (com o título Where I am Free), ou alguns desenhos sobre imagens de revistas de arquitectura e mobiliário expostos no Maat. Se nos primeiros, se intui a influência da arquitectura da cidade, nos segundos, é o cubismo e o trabalho com as cores que ressaltam. Nuns e noutros, pressente-se, contudo, a energia maníaca, por vezes violenta, de Nova Iorque.

O que o cartão permite

Quando se pensa em construção e arquitectura, a propósito do trabalho de Carlos Bunga, a expressão “sobre cartão” assoma com razoável bonomia. “É um material que me possibilita trabalhar de uma maneira fácil, de trazer conceitos que me interessam, como os de fragilidade, temporalidade. Vem da época industrial, posso trabalhá-lo manualmente. Mas dentro dele há toda uma série de questões que o ultrapassam, como o da pintura”. Em algumas peças, é exactamente o cartão que permite a Bunga imaginar um espaço difuso, volátil, indiscernível, entre escultura e a pintura, ao mesmo tempo que vai interrogando os sentidos de palavras como contenção, protecção e efemeridade. Note-se como estas abordagens se materializam, de um modo notável. Em Intento de conservación IV, 2015, uma série de telas monocromáticas que suscitam, àquele que contempla, uma relação háptica, fenomenológica com as superfícies. Diante destas pinturas somos conduzidos à cidade, à rua, sem sairmos do cubo branco.

Mas há outro elemento que a utilização do cartão permite: o gosto conceptual pelas maquetas que tradicionalmente se fazem em arquitectura para visualizar, em três dimensões, os desenhos. “Interessou-se a possibilidade, a potencialidade que as maquetas traziam, o seu lado experimental”, comenta. Carlos Bunga não se lança, frise-se, dos esboços para o domínio da arquitectura (ainda que as suas construções possam ser vistas como reflexos de edifícios que o artista viu, conheceu ou habitou), o seu território é o da arte, como assinalam as peças que aludem ao mobiliário. O que são?, apetece perguntar. Esculturas? Maquetas? Objectos de uso transformados? Repare-se, também, numa peça de chão, feita de volume em cartão, à volta da qual o espectador pode circular e imaginar outras arquitecturas. É um trabalho interpelador, pelo modo como, ao deixar na abstracção geométrica das superfícies a presença da marca humana, humaniza a ideia modernista de grelha.

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Como se fosse uma folha de Outono

Embora Carlos Bunga trabalhe com maquetas, estas não são um estágio para outras obras. Nos ambientes e construções que realizou, como na Capella MACBA, em Barcelona, uma igreja de um convento convertida em espaço expositivo, e na residência no Watermill Center em Long Island (onde fez, em 2017 o seu primeiro pavilhão exterior), teve que se adaptar aos espaços, no primeiro caso à monumentalidade e verticalidade do edifico gótico, no segundo aos elementos naturais, com um resultado similar: o desmoronar as construções, a transitoriedade das coisas, a ruína imposta ora pelos homens, ora pelo mundo natural. Sobre este último trabalho, o artista diz: “As catástrofes, os grandes acidentes despertam o sentido colectivo de humanidade, não sabemos como reagir. Acreditamos nos edifícios que fazemos, sentimo-nos seguros no seu interior, mas quando caem, ficamos sem saber como reagir. Sobre esse trabalho, decidi fazer uma coisa no espaço exterior e na altura ninguém entendia o que eu queria, nem aqueles que me tinham convidado. Mas eu insistia no lado experimental da residência, mesmo que o resultado final não acontecesse. O que me interessava era o processo”. O artista construiu uma casa de cartão que soçobraria aos elementos naturais, que desapareceria, quase na totalidade, arrancada da terra por uma forte tempestade (um pouco como a casa de Dorothy Gale n'O Feiticeiro de Oz, de Victor Fleming).

“Limitei-me aceitar a peça como ela estava. Cortei-a, pintei-a, deixei só as bases. Diria que caiu sob o efeito da natureza, como se fosse uma folha de Outono. Só no dia da inauguração, em que puderam ver o vídeo da sua construção, as pessoas entenderam o projeto e se emocionaram. Creio que é um trabalho que fala também do tempo, do facto de nenhum de nós ser eternamente jovem”. A propósito de juventude e de tempo, encetamos, terminando a conversa, outra viagem, aos anos em que Carlos Bunga estudou na Escola Superior de Artes e Design (ESAD). “Foi muito importante para minha formação. Quando me candidatei, Lisboa e Porto eram as grandes cidades, onde estavam os grandes artistas. A ESAD era uma escola periférica, mas essa foi a sua vantagem. Era um lugar inquieto, tinha uma energia muito particular. Não estávamos no centro de toda a informação, mas estávamos livres, livres de experimentar até fisicamente. Os estúdios eram mais abertos, a própria escola estava no meio de um bosque. Se pudesse voltar atrás, voltaria para àquela escola”. Mas esse regresso não se fará. Resta este que, no museu, termina (ou recomeça) com a passagem por um corredor em que penduradas, as pinturas nos fazem imaginar outra experiência: a de um passeio por uma rua estreita de Lisboa.

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