Clint Eastwood, um homem ainda imperdoável
Um grande come-back de Clint Eastwood, na história de um homem no caminho da redenção.
Clint Eastwood faz muita falta aos seus filmes, é a constatação mais óbvia que se tira deste belíssimo O Correio da Droga, que dez anos depois de Gran Torino o volta a ter como protagonista (e os dois filmes partilham ainda outro ponto de contacto objectivo: o argumentista Nick Schenk). O seu corpo, o seu rosto, a sua persona, a sua “lenda”, a sua gravitas muito particular, tudo isto se foi tornando, ao longo dos anos, um elemento essencial do seu cinema — talvez não da mesma maneira nos filmes dos anos 70 e 80, mas seguramente a partir dos anos 90, porventura com Imperdoável, talvez o momento em que Clint plenamente se apercebeu de que “pôr-se em cena” (e pôr-se em cena, então, sexagenário) transportava uma dimensão significante que não só impregnava os filmes como se tornava parte fulcral da sua “matéria”.
Em todo o caso, uma coisa é evidente: Clint pertence àquela linhagem de cineastas, de Chaplin a Moretti, que faz da sua presença em frente da câmara quase um “tema”. Sem essa presença, pode continuar a ser bom, mas não é bem o “mesmo”. E os filmes de Clint desde Gran Torino não tinham sido bem o “mesmo”, erráticos e desiguais, uns melhores (Sully), outros piores (American Sniper), como se lhe faltasse um centro, como se lhes faltasse a figura de Clint (não por acaso, o filme deste período que parecia mais “eastwoodiano” nem foi realizado por ele mas pelo seu assistente Robert Lorenz: As Voltas da Vida, de 2012, o seu único trabalho de actor durante estes dez anos). Ele aí está, então, a pôr-se em cena do alto dos seus 88 anos, a jogar, até humoristicamente, com os efeitos de reconhecimento desencadeados pela sua presença, mas sobretudo, e mais profundamente, a prolongar o trabalho sobre o recorte típico da personagem “eastwoodiana”. E nesse aspecto, por muito que haja aqui de “revisão” (ou até de “reiteração”), O Correio da Droga não é nada inócuo, conduz esse recorte a um ponto novo, acrescenta realmente alguma coisa.
“És masoquista?”, pergunta-lhe a ex-mulher (maravilhosa Dianne Wiest), numa ocasião em que a sua personagem baseada numa história verídica (um velho horticultor que, depois de ver o seu negócio falir — “por causa da internet” — enriqueceu como “mula” de um cartel de droga mexicano, a transportar droga entre o sul e o norte dos Estados Unidos) assiste a uma reunião familiar onde ninguém deseja a sua presença — a ex-mulher hostiliza-o, a filha não lhe fala, só a neta manifesta afecto por ele. Claro que um dos temas do filme é este, o estranho caminho para a redenção de um homem marginalizado pela própria família, e pelas boas razões de a ter descurado durante décadas, justificando-se com o trabalho quando a verdadeira razão, no fundo, era um forma de egoísmo e auto-centramento. Essa percepção, “corrigir-se”, é determinante no movimento da sua personagem, e isso implica, levado às extremas consequências, algum sofrimento, talvez mesmo “masoquista”. Não é Imperdoável, o filme onde Clint mais se submetia a maus tratos (da gripe a periódicos espancamentos), mas o momento em que O Correio da Droga assume que a “redenção” tem que passar pelo corpo é assombroso: depois de ser agredido (em elipse: a quantidade de coisas que Clint aqui deixa em “buracos” é enorme), vemo-lo a conduzir o seu automóvel, a testa ensanguentada como se carregasse uma coroa de espinhos invisível, a dirigir-se, se não para o seu Calvário, para o ponto máximo da entrega expiatória, o encontro definitivo com a polícia (e é só quando está por terra, finda a sua aventura, que Clint se auto-filma da forma mais solenemente “iconográfica”: aquele contraluz do diálogo com Bradley Cooper, no carro, é extraordinário).
Há ecos de Imperdoável, mas também de Um Mundo Perfeito (a estrutura narrativa em perseguição à distância, a propensão da personagem para ir “adoptando” os mais jovens, como um membro do cartel), de True Crime (a relação desleixada com a família), de Absolute Power (a personagem que vela, na sombra e em segredo, pelos seus próximos), de Million Dollar Baby (todas as cenas entre Clint e Wiest são magnificamente divertidas, no estilo “guerra dos sexos”, mas a derradeira é quase tão comovente como o célebre “mo cuishle”). E há, sobretudo, uma maneira de balancear isto tudo, este percurso entre tons da ligeireza à gravidade, da pura comédia ao puro drama, inclusivamente na definição das personagens, que parece bastante fora de tempo, e também é uma questão de mise en scène no sentido mais lato (neste aspecto, por uma vez, sim: há uma sombra do “classicismo” a percorrer o filme). Mas o filme também é “deste tempo”, e se Clint se diverte, nalgumas cenas (como que oferecidas de barato, e com um sorriso sardónico, aos caçadores de “incorrecções”), com o linguajar pouco apropriado da sua personagem, não perde de vista o pano de fundo: objectivamente, O Correio da Droga contém, sem qualquer espécie de sublinhado ou retórica, um crítica dos preconceitos e esteréotipos raciais na sociedade americana (porque é que a sua personagem escapa tanto tempo aos radares da polícia? Porque obviamente os policias não esperam um “homem branco velho” a fazer aquele trabalho — e isto para não falar da mais estranha cena, a do homem em pânico por ter sido mandado parar pela policia, que não tem outra razão de ser que não assinalar a brutalidade policial americana; Clint pode ser um homem branco velho, e um pouco reaça, mas não é estúpido nem cego).
A sequência final — com o I did it que arruma a questão no tribunal, a pôr a escolha entre certo e errado à frente das circunstâncias, a declarar-se “imperdoável” — é outro prodígio, de secura, primeiro, e depois duma sereníssima paz, nos últimos planos (no último, sobretudo, aquele onde começa a cair o genérico), o horticultor a cuidar suas flores, de certa forma, e paradoxalmente, o primeiro momento do filme em que a sua personagem é realmente “livre”. Um grande come-back, um filme belíssimo, aproveitemos, que disto se vê cada vez menos.