Willem Dafoe num filme torrencial que faz jus à entrega do actor
É, por onde se quiser ver, o papel da vida de Willem Dafoe, num filme torrencial que faz jus à entrega do seu actor.
Todas as dúvidas são legítimas na aproximação a este olhar sobre os últimos anos de vida de Vincent van Gogh: o facto de Vincente Minnelli, Robert Altman e Maurice Pialat já terem filmado a história do pintor; o desastre que foi Miral, a última realização de Julian Schnabel (ele próprio pintor passado ao cinema com resultados desiguais, em filmes como Basquiat ou O Escafandro e a Borboleta), que o remeteu ao silêncio durante quase uma década. E, contudo, as dúvidas dissipam-se muito rapidamente: transportado por um Willem Dafoe em estado de graça, numa interpretação que terá apenas igual no Ethan Hawke de No Coração da Escuridão de Paul Schrader, À Porta da Eternidade é uma surpresa notável. Uma sinfonia impressionista, arrebatada, seguindo a câmara nervosa de Benoît Delhomme numa corrida louca pelas paisagens de Arles e pelas visões transcendentais de Van Gogh, com a música de Tatiana Lisovskaya a propulsionar o estranho e tocante lirismo do filme.
Funcionando como um bloco em bruto de eventos que Schnabel vai esculpindo pacientemente ao longo do filme, À Porta da Eternidade remete para o Mr. Turner de Mike Leigh no modo como transmite ao espectador o laço inquebrável entre vida e obra, artista e quadro. Mas onde Leigh optava por uma imersão realista, Schnabel parte para um fluxo Malickiano de imagens e sons, mais “controlado” e narrativo do que no realizador de A Árvore da Vida mas partilhando o seu peculiar misticismo (bucólico, mas também abertamente gnóstico). Sem por isso deixar que essa transcendência sensorial tome conta do filme: há, mesmo assim, uma linearidade narrativa, uma compreensão das personagens e dos seus motivos, transposta nas longas cenas entre Van Gogh/Dafoe e os seus escassos amigos — Gauguin (Oscar Isaac), a sra. Ginoux (Emmanuelle Seigner), o médico Gachet (Mathieu Amalric) ou o padre do asilo (Mads Mikkelsen).
Mas nada disso faria sentido se não houvesse Dafoe, e Dafoe é extraordinário, abandonando-se de corpo e alma à “loucura normal” de Van Gogh. É o papel de uma vida, nos muitos múltiplos significados que a frase pode ter, e sem que Dafoe precise de “fazer número”: basta-lhe estar presente com o olhar, a voz, o corpo, e depois é ver como o actor deixa que a personagem o habite, o possua quase sem esforço, capaz de um desespero quase patético num momento e de uma lucidez de cordeiro sacrificial no seguinte. Dafoe tem sido repetidamente notável em filmes que não o merecem (vem-nos à cabeça o Pasolini de Ferrara), mas este é um daqueles casos em que o filme faz inteira justiça ao seu actor, como se fosse Schnabel a estar ao serviço de Dafoe e se limitasse a segui-lo pela sua corrida louca pelos campos de Arles. E À Porta da Eternidade não fica em nada atrás dos “outros” Van Gogh que já vimos no cinema.