Não consigo e não quero. Mas tive de ir, o Cartão de Cidadão caducou e só voltava a Portugal no Natal. Como o Consulado só funciona em horas de expediente, ergo, das 8h30 às 16h00, só consegui ir nas férias escolares de Outubro, mais conhecidas por half term, uma semana por inteiro. Cheguei à porta e o segurança nem me deixou subir as escadas, apontando-me o dedo em riste enquanto gritava, do alto da sua autoridade, ao que vinha. “Tem marcação? Então, não pode entrar.”
E assim mesmo, depois de de uma hora de viagem, nem as cores das paredes do Consulado consigo ver, voltando para casa com o rabinho entre as pernas e as duas mãos a abanar.
Simpático, no mínimo, não é? Pois é assim que se explica o porquê de não ter saudades de Portugal quando somos tratados à bruta por quem se diz nosso igual.
Cheguei a casa e nem sequer tentei fazer uma marcação por telefone, ninguém atende. Fui ao site, afinal estamos em pleno século XXI e em Inglaterra tudo se faz através da Internet. Já não tinham mais marcações durante o half term, pelo que tive de atrasar o regresso a Portugal no Natal.
Seis semanas depois, a 18 de Dezembro, voltei ao Consulado de cabeça erguida, subi as escadas e o mesmo segurança de dedo em riste. Altivo, respondi ter marcação no Consulado. “Não tenho aqui nada!”, respondeu, furioso, hirto, em chamas. "Tu fizeste marcação por telefone?" Tratou-me por tu, mas eu não o conhecia de lado algum. "Não, pelo site." "O site não funciona!“, gritou, faltava o grito, exasperado, e como o site não funciona, ainda não foi desta que pude ver as paredes do Consulado.
A sorte foi poder ir a Portugal pelas férias e tratar do Cartão de Cidadão. Chegado a Portugal para um merecido descanso e a senhora da Loja do Cidadão: "Mas, se reside em Londres, tem de tratar do cartão lá..." E eu, sem pinga de sangue, desde as 6h00 nas Laranjeiras depois de ter dormido em casa da minha avó...
Voltei ao Consulado no half term de Fevereiro (se querem mesmo saber, em Inglaterra temos três half terms durante o ano, com as aulas a terminarem na última semana de Julho) em desespero e tive a sorte de ter outro segurança à porta. Expliquei-lhe a situação tintim por tintim e a muito custo lá consegui uma marcação para as férias da Páscoa.
Quando lá cheguei na Páscoa já tinham passado cinco meses desde o início desta história, lá estava o meu amigo à porta. "Podes entrar", disse, contrariado, e o Consulado tem as paredes brancas.
Cheguei às 9h00 e já não havia lugar para me sentar. Famílias inteiras, homens, mulheres, crianças, novos e velhos, ocupavam o chão, os corredores, as cadeiras, a casa de banho, as escadas, à espera entre o silêncio e o choro das crianças, cansadas, mal dormidas, aborrecidas, também à espera, mas sem saber do quê.
Já estão a adivinhar, não é? Como o Consulado fecha às 16h00 e as pessoas têm de ir para casa, não fui atendido e tive de lá voltar no half term de Maio para fazer uma marcação para as férias de Verão.
Entretanto telefonaram-me do Consulado para dizer que iam fechar mais cedo para férias e a minha marcação havia sido cancelada.
Quase um ano entretanto passara. Estávamos em 2017 e esta "aventura" durava desde o Outono de 2016. Tudo por causa de um Cartão de Cidadão. Quando, seis meses depois, lá consegui meter os papéis para o renovar, disseram-me que precisava de uma nova marcação para poder levantar o dito. Pelo caminho, perdi três dias de trabalho e o respectivo salário.
Como não podia perder mais dias, hoje não tenho Cartão de Cidadão. Desisti, no fim, morto na praia onde perdi as estribeiras. O cartão? Ainda deve lá estar, à espera, como toda a gente. Ainda tenho o Passaporte Português e se me mandarem parar na auto-estrada continuo a ter um documento. Esse, ao menos, posso renovar em Portugal.
E nunca mais voltei ao Consulado, vá-se lá saber porquê. O Consulado Português em Londres corresponde ao Portugal no seu pior, o Portugal que não nos quer e de onde fugimos, constantemente relembrando-nos da razão da fuga, da saída, de não querermos ser parte de um sistema onde nada funciona e tudo se faz por especial favor, sendo preciso conhecer alguém, meter uma cunha, furar e corromper numa luta de sobrevivência sem sentido nos dias de hoje.
Entretanto, fiquei a saber do reforço do consulado com mais pessoal e até uma linha telefónica dedicada ao “Brexit”. Isto se alguém atender. Quanto a mim, lamento, mas não consigo entender o propósito de se ter um Consulado se o mesmo não serve os propósitos dos cidadãos, ao invés servindo de desculpa para quem lá trabalha poder passar uma temporada no estrangeiro. Infelizmente não posso dizer o mesmo das centenas de milhar, não, dos milhões de portugueses por esse mundo fora, tantas vezes dependentes de uma rede consular como o único meio de contacto com o Portugal que ficou para trás, lá, tão longe.