Pacto com o diabo: o petróleo da Venezuela e os EUA
Tal como Fausto, Hugo Chávez fez uma espécie de “pacto com o diabo”, continuado pelo seu actual sucessor, Nicolás Maduro. Para manterem a revolução bolivariana em marcha, e se manterem, a si próprios, no poder, continuaram a vender petróleo (a “alma” da Venezuela) aos EUA.
O negócio da compra e venda de petróleo entre os EUA e a Venezuela poderia inspirar uma nova encenação do Fausto. Teria como enredo os tortuosos caminhos da política internacional do século XXI. Na clássica obra de Johann Wolfgang von Goethe, escrita na transição do século XVIII para o século XIX, Fausto fez um pacto com Mefistófeles, uma das muitas encarnações medievais do diabo. Vendeu-lhe a sua alma em troco de mais sabedoria, de poder e de prazeres na vida terrena: “Fausto: Então convosco também, senhores meus, pode haver pactos? Mefistófeles: Mau é nós prometermos; que faltar-vos nenhum de nós vos falta; é pagamento resvés; nem meio chavo se lhe sisa.” (Ver trad. port. de António Feliciano Castilho, Civilização Editora, 2015, p. 86)
Tal como Fausto, Hugo Chávez fez uma espécie de “pacto com o diabo”, continuado pelo seu actual sucessor, Nicolás Maduro. Para manterem a revolução bolivariana em marcha, e se manterem, a si próprios, no poder, continuaram a vender petróleo (a “alma” da Venezuela) aos EUA, a “encarnação” política pós-moderna de Mefistófeles. É certo que os EUA continuaram a querer comprar petróleo — e a querer derrubar o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro —, mas isso são artimanhas já expectáveis de um Mefistófeles (Donald Trump).
Ironia à parte, e pondo de lado o imaginário religioso e a inspiração literária, a questão que pretendo analisar é a da racionalidade estratégica de cada um dos actores políticos neste negócio entre inimigos. Começando pelo caso dos EUA, a interrogação é a de saber por que motivo não foram, pelo menos até agora, implementadas sanções económicas bloqueando as importações de petróleo da Venezuela (e as exportações de derivados e produtos refinados para esse país)?
Até agora, as sanções aplicadas têm sido fundamentalmente sobre elementos do regime. Por exemplo, os EUA congelaram todos os activos de Nicolás Maduro no seu território. Outras figuras do regime, incluindo o irmão mais velho de Hugo Chávez, Adán Chavéz, antigo ministro do Poder Popular para a Cultura, sofreram similares sanções. Também Tarek El Aissami, que foi vice-presidente da Venezuela e um dos líderes do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), foi alvo de medidas de congelamento de bens e proibição de entrada em território norte-americano. Mas estas medidas tiveram um impacto limitado, sendo fundamentalmente simbólicas. Maior impacto tiveram as sanções financeiras impostas em 2017, proibindo ao sector financeiro dos EUA negociações sobre novos títulos da dívida pública da Venezuela — e pagamento de dividendos ao governo desse país —, alargando tal proibição à Petróleos de Venezuela (PDVSA) e à sua subsidiária nos EUA, a Citgo.
Várias razões podem ser apontadas para a continuidade do negócio petrolífero. Uma primeira razão está ligada aos efeitos negativos que, inevitavelmente, se fariam sentir nas refinarias norte-americanas na costa leste e golfo do México. Tal ocorrência deve-se às fortes ligações existentes no passado entre a indústria petrolífera dos dois países, politicamente próximos até finais dos anos 1990. Algumas das mais importantes refinarias dessa região dos EUA funcionam, tradicionalmente, com petróleo da Venezuela, estando especialmente adaptadas à refinação do petróleo pesado da Venezuela. Uma segunda razão é o provável aumento, ainda que temporário, do preço dos combustíveis no mercado norte-americano. Ocorreria pelo menos até serem encontradas alternativas de fornecimento. Naturalmente que esse aumento desagradaria aos consumidores e geraria críticas políticas internas. Há ainda uma razão política adicional: o impacto de tais sanções pode levar a uma crise humanitária ainda mais grave. Aí os EUA sofreriam também as consequências, pela provável fuga em massa da população venezuelana, dirigindo-se parte desse fluxo ao seu próprio território. Mas a questão não se esgota nestas facetas. Abstraindo da dimensão político-humanitária, o impacto das sanções não seria necessariamente negativo para a generalidade da indústria petrolífera norte-americana, nem para o conjunto da economia dos EUA. Uma parte do sector petrolífero/energia e outros relacionados provavelmente até ganharia com isso. Vejamos melhor a questão.
A indústria de petróleo/energia envolve múltiplas actividades específicas. Não pode, por isso, ser analisada monoliticamente. É complexa nas suas ramificações — extracção, refinação, produção de derivados (gasolina, gasóleo, benzina, gases de petróleo liquefeitos e muitos outros) logística/distribuição, etc. — e é uma actividade tipicamente internacional/global. No caso dos EUA é particularmente importante não perder de vista este aspecto. Como já referido, para as empresas que operam refinarias na costa leste e no golfo do México, especializadas no tipo de petróleo da Venezuela, o impacto das sanções seria negativo. Todavia, já para as suas concorrentes internas, que operam com petróleo com outras origens (doméstico e/ou importado), existiriam vantagens, pois aumentava a procura/vendas. Mas há aspectos mais importantes do que isso. A indústria extractora/produtora de petróleo não convencional (shale oil ou tight oil) — que já é a principal fonte de produção nos EUA — até ganharia com uma subida do preço do petróleo resultante das sanções à Venezuela. A razão é que o seu custo de extracção é relativamente elevado. As sanções trariam, por isso, uma oportunidade para reforçar a produção e investimento no petróleo não convencional a nível interno, que é pouco rentável, em certos casos mesmo inviável economicamente, com o petróleo a custo baixo.
Mas a continuidade do negócio do petróleo entre inimigos — o “pacto com o diabo” — tem outros ângulos e nuances importantes. Quer Hugo Chávez, no passado, quer agora Nicolás Maduro e os seus apoiantes têm acusado, reiteradamente, os EUA de quererem derrubar o seu governo para controlarem os recursos petrolíferos. Importa lembrar que Venezuela tem as maiores reservas mundiais estimadas de petróleo. Mas, sendo assim, qual a razão pela qual a Venezuela continua a vender, ininterruptamente, este precioso líquido ao seu arqui-inimigo, o “império”? Em coerência com a sua estridente retórica, a estratégia adequada seria um boicote da venda aos EUA.
A Arábia Saudita e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) fizeram isso em 1973, na sequência da guerra israelo-árabe, provocando danos significativos na economia dos EUA e à generalidade dos países capitalistas industrializados. Esse boicote iria não só causar problemas de abastecimento aos norte-americanos como fazer aumentar significativamente os preços de petróleo. Tudo isso seria óptimo para Nicolás Maduro, que luta pela sua sobrevivência política. Nada disso foi feito. A razão não é, apenas, a já anteriormente apontada (a de que uma parte importante do sector petrolífero dos EUA provavelmente até ganharia com isso, aumentando os lucros e a produção interna.)
A Venezuela assumiu em inícios de 2019 a presidência rotativa da OPEP. Mas nem a Venezuela, nem a OPEP têm hoje um poder comparável ao da Arábia Saudita e da OPEP em 1973. Ocorreram, desde então, transformações muito significativas que lhes retiraram margem de manobra. A diversificação das fontes de energia, o aumento do peso dos exportadores não membros da OPEP e o crescimento do petróleo não convencional — tendo aí a América do Norte as maiores reservas mundiais — mudaram muito o quadro energético e geopolítico. Para além disso, a especificidade do petróleo venezuelano, que é, como já referido, do tipo pesado ou extrapesado, apresenta, em termos comparativos, algumas desvantagens assinaláveis. Levanta, desde logo, problemas específicos de transporte e de refinamento, sendo este último mais difícil e mais caro. Necessita de ser pré-refinado para uma espécie de petróleo médio, o que implica a existência de um equipamento caro e adaptado a essa operação nas refinarias — algo que escasseia na Venezuela. A alternativa técnica mais simples é misturá-lo com petróleo ligeiro importado. Para além disso, a maioria das suas reservas situa-se na faixa petrolífera do rio Orenoco. E o referido petróleo pesado, ou extrapesado, para além de levantar problemas técnicos e de custos acrescidos, tem impactos ambientais negativos numa área ecologicamente muito importante para um planeta já cheio de problemas ambientais.
É necessário ainda notar que a explicação para as reservas de petróleo da Venezuela estarem no topo — e terem suplantado as da Arábia Saudita — não resulta só da abundante existência desse recurso energético no seu território. É também a outra face da contínua quebra de produção ocorrida nos últimos anos. O petróleo é uma indústria de capital intensivo e tecnologia que na Venezuela se tornou obsoleta pela falta de investimento. Sinal dos tempos, e da enorme mudança geopolítica ocorrida, a proibição que vigorava desde 1975 nos EUA sobre a exportação do petróleo produzido domesticamente — sequela do choque petrolífero de 1973 e do embargo petrolífero — foi levantada em finais de 2015. As suas empresas podem novamente exportar sem restrições para o mercado internacional. No caso da Venezuela, importou em 2016 mais de 50.000 barris/dia de petróleo ligeiro/diluentes dos EUA. Como já explicado, necessita destes para preparar o seu petróleo pesado para exportação. É mais barato importar dos EUA do que, por exemplo, de Angola, da Nigéria ou Argélia. Num país sem know-how tecnológico e que luta com enorme falta de liquidez em divisas aceites internacionalmente, a sobrevivência do regime leva-o a fazer negócios com o inimigo, mesmo quando estes contradizem flagrantemente a sua retórica.
Até agora, Mefistófeles — o belicoso Donald Trump — tem continuado também com os negócios. Resta saber até quando este “pacto com o diabo” perdurará. O clímax parecer ter chegado com o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente da Venezuela e a decisão de Nicolás Maduro de romper relações diplomáticas e expulsar os diplomatas dos EUA. Estão lançados os ingredientes para um final dramático bem mais intenso do que no Fausto de Goethe.