Mortalidade infantil: casos analisados à lupa para ver se há "falha sistémica"

Aumento da taxa de mortalidade infantil em 2018 pode ser "uma espécie de aviso cautelar”. E implica que especialistas olhem para os números e percebam se há “alguma falha sistémica", diz presidente da Comissão da Saúde Materna , da Criança e do Adolescente.

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Nelson Garrido

As circunstâncias em que ocorreram as mortes de crianças no primeiro ano de vida em 2018 vão ser passadas à lupa por um grupo de trabalho criado pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) e que integra peritos internos e externos. É um trabalho necessário para se perceber se o aumento da taxa de mortalidade infantil no ano passado – mais 60 óbitos em números absolutos do que em 2017 – foi um fenómeno "meramente casual" ou se pode ser “o princípio de uma descida" de um patamar que nos colocou entre os melhores países neste indicador, explica o presidente da Comissão Nacional da Saúde Materna, da Criança e do Adolescente, Gonçalo Cordeiro Ferreira, que integra este grupo de trabalho.

Avisando que “não é fácil encontrar causas directas para fenómenos muito complexos", o médico sublinha que vai ser necessário assim olhar para os dados dos últimos anos para perceber se houve alguma altura em que “as coisas se começaram a estragar”, de forma a que, caso haja necessidade disso, as "corrigir".

A DGS anunciou a criação deste grupo esta sexta-feira, depois de os números da mortalidade infantil terem sido divulgados em bruto no início desta semana, de o Presidente da República ter admitido que estava preocupado e de o PSD ter apresentado um requerimento para que a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, seja ouvida com urgência na Comissão Parlamentar da Saúde.

Segundo os dados que ainda são provisórios, os valores da mortalidade infantil em 2018 ficaram  acima dos do ano anterior, mas são da mesma ordem dos registados em 2016. A taxa de mortalidade infantil (óbitos até um ano de idade por mil nados-vivos) foi de 3,28, quando em 2017 tinha sido de 2,69, o segundo valor mais baixo desde que há registos (em 2010 foi ainda inferior). 

“Uma espécie de aviso cautelar”

A confirmar-se que houve mais 60 óbitos no ano passado face a 2017, este é, de facto, “um incremento claro, é um número absoluto relativamente elevado” que não pode ser justificado apenas pelo aumento da natalidade, nota Gonçalo Cordeiro Ferreira. É, enfatiza, “uma espécie de aviso cautelar”, que implica que os especialistas olhem para os números e percebam se há “alguma falha sistémica que está a permitir a erosão" da situação.

Até porque, explica, se olharmos para os números desde 1990, a taxa de mortalidade nas várias áreas de saúde da criança "tem vindo a baixar consistentemente", apesar de se observarem alguns picos. “Agora, também é verdade que, para que tenha havido este progresso, foi preciso que sucessivos governos tivessem vontade política para que as coisas melhorassem e isso traduziu-se em organização, em recursos humanos e em financiamento”, recorda.

O que é que pode estar a falhar, então? É preciso perceber o que se está a passar, reafirma, notando que, "quando um sistema chega a um nível de excelência, para se manter, não pode ficar entregue a si próprio". E a que a organização “custa tempo e dinheiro”. “Milagres não se fazem sem recursos e sem investimento”, enfatiza.

Agora, o que há a fazer é, para já, analisar com muito cuidado estes dados, olhando caso a caso, até porque são números pequenos. Tem que se perceber como e quando ocorreram as mortes, olhando para as “circunstâncias” em que aconteceram, explica. 

Os dados já avançados indicam que a taxa terá aumentado mais à custa da chamada mortalidade neonatal (nos primeiros 28 dias de vida) e da mortalidade neonatal precoce (na primeira semana de vida). Graça Freitas revelou que 194 dos 289 óbitos infantis registados em 2018 ocorreram na fase neonatal. E, destas 194 mortes, uma centena foram bebés prematuros de gestações com menos de 28 semanas, os chamados "grandes prematuros", que apresentam maior risco de mortalidade e  complicações.

Pode este fenómeno justificar o aumento da taxa de mortalidade infantil em 2018?  Gonçalo Cordeiro Ferreira insiste que é "necessário ser muito cauteloso na análise", porque, por exemplo, "na Irlanda e nos países nórdicos as mães também são mães muito tarde, no entanto têm mais filhos, e as taxas [de mortalidade] não reflectem isto”. E insiste: "o fenómeno é tão complexo que arranjar só um factor como causa seria anedótico."

O grupo de trabalho vai agora analisar em profundidade os dados da mortalidade infantil nos últimos anos e os resultados deste estudo serão apreciados por um segundo grupo de especialistas, antes da sua divulgação, especificou a DGS, que gere o Sistema de Informação de Certificados de Óbito (SICO), o sistema que permite fazer a vigilância epidemiológica da mortalidade em Portugal.

"Esta vigilância é complementada, periodicamente, por estudos mais abrangentes e aprofundados no sentido de clarificar o fenómeno e seus determinantes", explica, adiantando que esta competência se insere na sua missão de "informar, com rigor e transparência, a bem da saúde dos portugueses.

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