A Casa do Vapor foi abaixo mas a Cova cresceu nela
Uma casa de madeira, uma de cimento, uma biblioteca, um parque infantil, um jardim dunar. A Casa foi abaixo, mas as raízes de Amália Buisson ficaram na Cova do Vapor.
“O percurso académico não tem nada a ver”, atira, às tantas, Amália Buisson. Estudou cenografia na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, mas pouco trabalhou na área, saltitando de projecto em projecto, em Portugal e, sobretudo, lá fora. Esteve envolvida em teatro de rua de cariz social em São Paulo, no Brasil; deu cursos de costura em Lisboa. Mas sobre todas as outras andanças pouco há-de falar. Por mais que tentemos desviar o rumo à conversa, Amália volta sempre à Cova do Vapor e às iniciativas de empreendedorismo social que tem desenvolvido nesta aldeia de ruas labirínticas, entalada entre Tejo, mar e matas. É aqui que agora vive – e é aqui que a conversa se deixa ficar. Como pregos azuis a colar uma casa de madeira, a história que liga Amália à Cova do Vapor desenha-se em quatro actos. Contemo-los, então.
Acte une. Amália nasceu em Paris, filha de pai francês e de mãe portuguesa. “Eles conheceram-se em França e eu nasci lá, mas com quatro ou cinco anos vim para Portugal com a minha mãe”, recorda. “Vivi em Lisboa a minha juventude toda.” Quando Amália tinha “mais ou menos 12 anos”, o pai mudou-se também para Portugal e instalou-se na Cova do Vapor, aldeia piscatória e balnear localizada na Trafaria, concelho de Almada. É assim que a aldeia entra pela primeira vez no mapa afectivo de Amália. “Tem aqui uma casinha pequenininha há mais de 20 anos.”
Anos depois, ainda andava ela ligada à cenografia, quando conheceu em Berlim “a malta do colectivo Exyzt”, um grupo de arquitectos sediado em Paris. Akt zwei. Contaram-lhe que tinham condições para desenvolver uma nova iniciativa em Portugal, de forma a reaproveitar as madeiras utilizadas no projecto que tinham acabado de criar em Guimarães no âmbito da Capital Europeia da Cultura, em 2012. Desafiaram-na a sugerir outro local em Portugal, desta vez “ao pé da praia” e próximo de Lisboa. “Um dia, acho que estava aqui na Cova do Vapor, e comecei a pensar que isto se calhar tinha tudo a ver com o que eles procuravam”, recorda.
Um ano depois, nascia a Casa do Vapor, “um centro cultural temporário, cuja programação era feita pelas pessoas e para as pessoas daqui”. As madeiras fizeram-se cozinha, biblioteca, oficina de bicicletas e rampa de skate. Vieram voluntários de toda a Europa ajudar, outros chegavam em passeio domingueiro e deixavam-se ficar. “Cada pessoa encontrava a sua razão para estar aqui. Sentiam que podiam fazer parte do projecto de alguma forma e dar mesmo de si.” Ajudar nas tarefas do dia-a-dia, desenvolver uma intervenção artística, uma actividade para as crianças. Era só arregaçar as mangas e fazer. Pelo menos no microcosmos que a Casa do Vapor abria sobre si. Durante o processo, Amália percebeu que “é superdifícil fazer coisas” em Portugal. “Ainda hoje continuo a deparar-me com esses problemas”, lamenta.
Seis meses depois, a Casa do Vapor veio abaixo. Mas a Cova ficou nela. A biblioteca tornou-se permanente, transferida para a associação de moradores. As madeiras ganharam novas vidas. E alguns pregos utilizados na construção ficaram na caixa de ferramentas da família Buisson. “Cada vez que uso um destes pregos azuis sei que veio da Casa do Vapor”, sorri. Estamos no rés-do-chão do antigo restaurante mais icónico da aldeia, em plena rua principal, comprado pelo pai de Amália há uns anos para servir como atelier. Nos pisos superiores, o que em tempos foi uma estalagem é, desde 2014, o hostel de Amália – cinco quartos, onze camas e o mesmo nome que o edifício histórico da Cova sempre teve: Bugio à Vista. É assim que chegamos ao acto três.
Quando a Casa do Vapor estava a ser construída, chegaram a dormir aqui muitos dos voluntários. “Ainda não tinha água nem luz nem nada.” Veio daí a ideia de restaurar a parte superior do edifício e abrir uma casa de hóspedes. Durante dois anos, Amália andou mais focada nisso e em 2016 voltou aos projectos sociais com o TransforMar, uma iniciativa inserida na Biblioteca do Vapor. Acto quatro. “A intenção era estender as actividades para fora da biblioteca. É um espaço muito pequenino e era complicado cativar o público, porque há poucas crianças e os idosos não saem de casa”, explica. Como a ideia era apelar à participação local, perguntaram aos moradores o que gostavam de ver surgir junto à biblioteca. “Toda a gente queria um parquinho para as crianças brincarem.”
Em 2017, nasceram baloiços e escorregas de madeira, já sobre a areia. No ano passado, deram mais um passo rumo à praia. É que ela não fica perto. Fica dentro da Cova do Vapor – faz parte da história, da identidade e das próprias ruas de uma forma muito literal. Uma das “grandes queixas dos moradores” era a areia, que entra dentro das ruas e das casas, entope bombas, provoca inundações e atolamentos no parque de estacionamento. “É considerado um problema porque está num sítio onde as pessoas não precisam dela, mas o facto de haver muita areia a vir para aqui até é uma coisa especial e rara porque no resto da Costa [da Caparica] há um problema de erosão gigante.”
A solução? Recuperar o cordão dunar entre a praia e a aldeia, para criar uma barreira natural que controle a areia. A que se vai no mar a cada tempestade e a que vem pelas ruas dentro quando o vento sopra de mais. No início do ano passado, fizeram uma campanha de crowdfunding para angariar dinheiro para o projecto. Entretanto, conseguiram mais financiamento, para fazer um “estudo prévio do lugar a nível histórico, geográfico e arquitectónico, com uma análise global da relação entre a malha urbana, a duna e a praia”. A ideia é que, a partir dele, seja possível reorganizar acessos, estacionamentos ou passadiços.
Desenharam placas informativas para evitar o pisoteio e, no dia 12 de Janeiro, uma equipa de voluntários plantou tufos de estorno sobre as dunas, a “planta mais eficaz na retenção das areias”. O próximo passo é lançar um vídeo de sensibilização ambiental. Neste caso, a ideia passa por apelar à preservação das dunas mas também “valorizar a Cova do Vapor como património cultural, vila piscatória e estância balnear ainda supertípica”.
“Agora que tenho mais tempo livre, comecei a dedicar-me outra vez um bocado à parte exterior da casa, que é o jardim dunar”, ri-se. “Se conseguirmos resolver este problema, se calhar vamos tentar resolver outro, como o lixo.” Durante a fase final das obras no hostel, Amália esteve aqui “enfiada durante oito meses para conseguir pôr tudo a funcionar”.
Desse “esforço gigante”, acredita, “acabou por nascer mais do que uma casa, que é um negócio”. “Acabou por nascer uma ligação.” A madeira fez-se cimento, jardim, comunidade, lar. “Sinto que estou enraizada num sítio, coisa que nunca tinha sentido antes”, confessa. Continua a trabalhar em Londres durante temporadas em produção de eventos para “ganhar dinheiro”. Mas é aqui que quer investir e sedimentar. “Acho que a Cova agora é um bocadinho a minha casa.” Uma casa que quer ver “crescer e evoluir com os tempos, mas da forma mais sustentável possível.”