A batalha da Venezuela: constitucionalidade, legitimidade e reconhecimento internacional
Tudo indica que a longa disputa de poder em curso na Venezuela entrou na fase mais crítica.
1. Quem é, afinal, o presidente da Venezuela: Nicolás Maduro ou Juan Guaidó? Esta é a interrogação que muitos colocam nesta altura, dentro e fora do país. Desde a chegada ao poder de Hugo Chávez, a Venezuela tem sido terreno de inúmeras transformações e convulsões sociais e políticas. Em 1999, no seu primeiro ano de exercício do poder, Hugo Chávez fez avançar a iniciativa de uma nova lei fundamental — a Constituição da República Bolivariana da Venezuela —, que é o actual texto constitucional do país. Mas as relações com a oposição sempre foram turbulentas e decorreram fora de um quadro de estabilidade democrática e de pluralismo. Em 2002, um golpe de estado, que acabou por fracassar, tentou afastar Hugo Chávez do poder. Na década subsequente, após a morte de Hugo Chávez, Nicolás Maduro sucedeu-lhe na presidência em 2013. Mas a crise social, económica e constitucional agravou-se consideravelmente durante o mandato deste último. A actual situação, extraordinariamente confusa em termos políticos, pode ser analisada em várias vertentes para uma tentativa de compreensão: (i) a da legalidade constitucional; a da legitimidade dos detentores do poder; (iii) e a do reconhecimento internacional do governo venezuelano.
2. Em termos legalidade constitucional, ou mais exactamente de falta dela, a Venezuela atingiu em 2018 um novo clímax episódios e de tensões. Primeiro, com a (re)eleição de Nicolás Maduro para a presidência, num acto eleitoral contestado pela oposição como não sendo livre, nem isento e de natureza fraudulenta. Internacionalmente, esse a eleição foi também objecto de uma condenação alargada por diversos Estados e organizações não governamentais (ONG) que usualmente actuam como observadores de actos eleitorais. Uma segunda frente na crise constitucional resultou da convocação e abertura dos trabalhos de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Oficialmente foi criada para prosseguir com o legado de Simón Bolívar e de Hugo Chávez. Na prática, não inclui qualquer representação da oposição. Para além disso, já anteriormente, em 2017, o Supremo Tribunal de Justiça tinha já retirado poderes à Assembleia Nacional — o Parlamento da Venezuela onde a oposição é maioritária — atribuindo, a si próprio, poderes legislativos. Ao mesmo tempo, estendeu os poderes executivos do Presidente da República. Agora, a nova Assembleia Constituinte estabeleceu competências legislativas próprias, em vez da Assembleia Nacional.
3. Na sua (auto)proclamação como Presidente da República a 23/01/2019, Juan Guaidó invocou o artigo 233º da Constituição venezuelana. Esse artigo regula o que a lei fundamental do país designa como ausências absolutas do Presidente da República (morte, renúncia, demissão decretada pelo Supremo Tribunal de Justiça, incapacidade física ou mental permanente, abandono do cargo declarado como tal pela Assembleia Nacional, bem como revogação popular do seu mandato). A consequência constitucional estabelecida é “uma nova eleição universal, directa e secreta será realizada dentro dos trinta dias subsequentes”; e que durante o período onde ocorre a eleição e tomada de posse do novo presidente, “o Presidente da Assembleia Nacional tomará o cargo da Presidência da República”. Para além disso, Juan Guaidó invocou ainda o artigo 350º da Constituição, o qual confere um espécie de direito de desobediência civil, ou de resistência, face à opressão: “O povo da Venezuela, fiel à sua tradição republicana, à sua luta pela independência, paz e liberdade, ignorará qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou enfraqueça os direitos humanos”. Quanto a Nicolás Maduro, atacou duramente a proclamação presidencial de Juan Guaidó como uma usurpação do poder constitucional do qual se encontra investido. E o Supremo Tribunal de Justiça — onde os juízes são próximos do governo de Nicolás Maduro — anunciou ter participado à Procuradoria-Geral um “crime de usurpação de funções presidenciais” para punição dos culpados.
4. Para além da questão da conformidade, ou desconformidade, com o artigo 233º e 350º da Constituição da Venezuela, a proclamação de Juan Guaidó, que se opõe radicalmente ao exercício do poder tal como está a ser exercido por Nicolás Maduro pode (e deve) ser discutida no plano da legitimidade. Importa notar que próprio artigo 350º da Constituição da Venezuela, remete, de forma implícita, para a questão da legitimidade dos governantes. Naturalmente que exercício do poder político deve respeitar a legalidade de num Estado de Direito. Mas essa conformidade não esgota o problema, sobretudo numa sociedade democrática e respeitadora dos Direitos Humanos. (Um exemplo extremo deste problema encontra-se na Alemanha nazi, nos anos 1930, onde existia um governo alemão actuava num quadro de legalidade, mas sem legitimidade). Um governo deve não só respeitar o quadro legal-constitucional vigente, como atender a imperativos de justiça e éticos. Mas, e se não for assim? Há um direito de insurreição contra um governo ilegítimo e tirânico? Na tradição do pensamento político ocidental, a ideia de um direito de sublevação / resistência contra a tirania tem bastante aceitação. Encontramo-la formulada já no século XVII, em Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke. Para além de Locke, agora mais próximo de nós, está presente nos trabalhos de John Rawls, especialmente em Liberalismo Político (1993), uma importante reflexão sobre as condições de aceitação do poder político e/ou autoridade pelos governados. Como mostra John Rawls, podem existir poderes ou autoridades de facto — desde logo, governos — que não são legítimos.
5. O que vimos até agora está mais no plano político interno da Venezuela. Todavia, há, no plano externo, uma outra faceta fundamental, que é a questão do reconhecimento internacional do seu governo. O reconhecimento do governo de um Estado é um acto que cabe aos outros Estados da comunidade internacional. Face ao Direito Internacional Público, estes podem aceitar, ou não, o governo de outro Estado como representante deste nas relações internacionais. Se isso não põe em causa o reconhecimento internacional do Estado, coloca, naturalmente, problemas de relacionamento internacional a esse governo. Em teoria, será ignorado pelos Estados que não o reconhecem. No caso da Venezuela, a (auto)proclamação a 23/01/2019 de Juan Guaidó como Presidente da República transitório da Venezuela, até novas eleições, teve um reconhecimento da maioria dos governos dos Estados Américas (desde logo, os EUA, Canadá, Brasil, Colômbia, Argentina e Chile), secundados por Luis Almagro, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Nicolás Maduro manteve, todavia, o reconhecimento do México, Cuba, Rússia, China e Turquia. Quanto à União Europeia, evitou, pelo menos para já, reconhecer explicitamente Juan Guaidó, apelando a novas eleições livres e democráticas.
6. Tudo indica que a longa disputa de poder em curso na Venezuela entrou na fase mais crítica. É uma confrontação frequentemente violenta, onde a guerra de interpretações constitucionais e de legitimidades se prolonga em confrontos físicos e em apoios e pressões externas. Em termos de legalidade constitucional — e de legitimidade de resistência a um governo que parece ser, cada vez mais, violador dos Direitos Humanos —, a oposição a Nicolás Maduro tem argumentos relevantes, especialmente na invocação do dispositivo do artigo 350º da Constituição. Para além disso, há a ideia de um direito de rebelião contra a opressão, que lhe confere legitimidade. Neste contexto turbulento e de crescente pressão internacional, a China e a Rússia mantiverem o reconhecimento do governo de Nicolás Maduro, pelo que este continua a ter um mínimo de suporte político e económico para não claudicar. Claro que os apoios externos a ambos os lados têm uma dimensão político-ideológica, ou, mais pragmaticamente, de interesses, como é usual na política internacional. Em qualquer caso, um aspecto crucial para o rumo futuro dos acontecimentos reside nas forças armadas. A questão é saber para que lado irão pender. É impossível a Nicolás Maduro manter-se no poder sem o seu apoio. Para já tem conseguido a sua protecção. Quanto à oposição agora chefiada por Juan Guaidó, não poderá assumir um controlo efectivo do governo, nem efectuar novas eleições presidenciais, sem o suporte destas. Um papel determinante terá também o sentimento de descontentamento e de revolta, sobretudo se alastrar às classes mais populares. Isso poderá ser decisivo para a mudança de campo do exército. Os próximos tempos mostrarão para que lado vai pender a batalha da Venezuela.
Uma adenda final. Há o risco do reconhecimento internacional de Juan Guaidó abrir caminho a uma eventual intervenção externa. No pior cenário, poderia precipitar uma confrontação violenta alargada. Os EUA, ao não reconhecerem o governo de Nicolás Maduro — e ao reconhecerem Juan Guaidó como Presidente —, decidiram, também, ignorar a ordem de expulsão dos seus diplomatas. Será um braço-de-ferro que poderá levar a um casus belli, no caso de os seus diplomatas não abandonarem o país no prazo de 72 horas que lhes foi dado para o efeito? Nesta altura, apenas podemos conjecturar sobre a possível evolução dos acontecimentos. Mas é conhecido o temperamento belicoso e, de alguma forma, também imprevisível, de Donald Trump, o que leva a ter apreensão sobre as suas decisões de política externa. Para além disso, são muito más as relações entre os dois Estados, desde que Hugo Chávez chegou ao poder em finais dos anos 1990. E, por último, há ainda o factor Rússia. Esta tem procurado ganhar influência na Venezuela, num terreno geopolítico usual dos EUA, as Américas. Tudo condimentos que podem levar a uma crise internacional alargada, algo que um mundo já cheio de tensões dispensaria bem.