Um centro cultural para conversar com os vizinhos no coração de Lisboa
As Carpintarias de São Lázaro reabrem esta sexta-feira, definitivamente, como espaço cultural. Há artes visuais, teatro, dança, música e também comida. E acima de tudo uma vontade de diálogo com a cidade que está à sua volta.
Quando o encenador Marcos Barbosa nos abre as portas das Carpintarias de São Lázaro, a dois passos do Martim Moniz, em Lisboa, temos dificuldade em acreditar que, dali a poucos dias, estarão prontas para a sua inauguração – marcada para a noite desta sexta-feira. As obras estavam concluídas. Mas a antiga fábrica de móveis reconvertida em centro cultural continuava a parecer uma fábrica. E assim continuará.
“Este não é um centro cultural canónico”, explica Barbosa, enquanto faz as honras da casa nesta visita guiada. É uma das cinco pessoas que dirigem o espaço – juntamente com os galeristas e curadores Alda Galsterer e Fernando Belo, o músico e produtor Manuel Fúria e o empresário Jaime Dominguez. A intervenção feita no espaço foi minimalista. As vigas e as paredes marcadamente industriais vão continuar à vista. Pelas janelas, continuará a entrar luz. Apenas sobressaem dois elementos novos: uma escada metálica em caracol, que faz a ligação entre o edifício e a cobertura, e um mezanino que aproveita o imenso pé direito do edifício.
O piso térreo será o coração das Carpintarias de São Lázaro, com espaço expositivo e um auditório (para cerca de 120 pessoas) que só a estrutura técnica metálica denuncia. O auditório poderá assumir uma configuração de black box quando rodeado por panejamentos negros. Por baixo deste piso fica o território de trabalho, com uma sala de ensaios e espaço onde poderão ser criados vários pequenos gabinetes para as companhias de teatro e dança que se pretende que ocupem as Carpintarias ou ateliers para artistas visuais.
Mas aqueles que entrarem no novo centro cultural de Lisboa a partir desta sexta-feira – a primeira proposta da programação é a exposição Jeu de 54 cartes, a mais recente série de trabalhos de Jorge Molder – poderão encontrá-lo, a cada nova visita, com configurações diferentes.
O auditório pode abrir-se para comunicar com a zona expositiva e também está previsto que as duas áreas possam confundir-se para acolher determinados projectos. A sala de ensaio tanto acolherá espectáculos como conferências. Certo é que a versatilidade conviverá com um certo minimalismo. “Vamos sempre usar as soluções mais simples”, explica Marcos Barbosa, que foi director do Teatro Oficina, em Guimarães, antes de integrar a Associação Recreativa e Cultural das Carpintarias de São Lázaro, que ganhou o concurso público para a exploração do novo espaço artístico.
Esta será inevitavelmente uma sala imperfeita, prossegue: “Vamos sempre ouvir o autocarro a fazer a curva na rua de São Lázaro, a ambulância que vai para o Hospital de S. José ou alguém que resolve dar um grande grito na rua”. “Ouvir a cidade” é uma espécie de ponto de honra para as Carpintarias de São Lázaro.
O público já consolidado da capital, que frequenta os espaços quer públicos quer privados com programação regular, acabará por ser também o público das Carpintarias de São Lázaro. O que falta fazer, na opinião de Barbosa, é chamar um público novo: os vizinhos. “Criar um centro cultural aqui só se justificará se ele influenciar a vida deste sítio”, defende.
As Carpintarias de São Lázaro querem pensar as relações de vizinhança e tornar-se importantes para as pessoas que moram à sua volta. Seja a população mais idosa que ainda habita na Mouraria, por exemplo, sejam os imigrantes que vivem entre o bairro histórico, o Intendente e o Martim Moniz.
No fim-de-semana de abertura, A cozinha dos vizinhos entra literalmente pelo espaço dentro, através de uma parceria com a Cozinha Popular da Mouraria. No sábado, o realizador Tiago Pereira e o músico Sílvio Rosado, por seu turno, montam, em tempo real, um filme a partir do arquivo do projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, onde se poderá encontrar uma Lisboa que é um mosaico de bairros e de culturas migrantes e emigrantes.
A ideia de diálogo vai continuar a marcar o arranque da programação do espaço, que se prolonga até 14 de Fevereiro, com a apresentação de Aqui Somos Todos Lázaros, monólogo escrito por Jacinto Lucas Pires e interpretado por Marcos Barbosa, a partir de um conjunto de residências em cinco cidades do país e que, em Lisboa, o levou a trabalhar com investigadores do CEDOC – Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa.
A relação das artes com a vizinhança directa motivou também um manifesto, chamado Contracena, que vai ser lido publicamente no dia 9 de Fevereiro e que tenta resumir a visão política e criativa das Carpintarias de São Lázaro. A principal preocupação dessa proposta é a “utilidade" do que ali se fará, pensando a arte “em ligação com tudo aquilo que está à margem”, explica Barbosa.
Alguns artistas e colectivos já responderam ao desafio e farão parte dos primeiros meses de programação do espaço. Entre eles, as companhias Útero (que ali estreará uma nova criação, Dentro, em Junho) e Ninguém, e criadores como a coreógrafa Lígia Soares (Abril e Junho) e o performer e coreógrafo Rafael Alvarez (Março e Maio).
As Carpintarias de São Lázaro tiveram uma primeira abertura há dois anos, por ocasião da Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura, com uma instalação do colectivo de artistas cubanos Los Carpinteros. Agora reabrem depois de um período de obras.
Esta é uma inauguração “definitiva”, ainda que os espaços comerciais que vão coexistir com o centro cultural, como uma loja virada à rua de São Lázaro, ou o restaurante previsto no terraço do edifício – com uma vista extraordinária sobre as colinas da Graça e do Castelo –, não entrem já em funcionamento. Já a actividade artística promete não voltar a parar.